segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Buried (2010)

Sobre o corpo tremeliquento, um uniforme descartável vagamente assemelhado à «farda» de uma sexagenária a caminho da mercearia. Os pés gelados, um nó na garganta, uma ligeira – mas muito ligeira – percepção cómica do ridículo: encontro-me num cubículo parecido com uma cabine de provas da Zara, mas sem um espelho para pôr a vaidade em dia. Dois cabides, um banco corrido, a porta semi-aberta e eu para aqui deixado, encolhido, numa espécie de tempo suspenso, com um ontem bem distante e um amanhã que nunca mais chega. Basta de poesia: estou há quinze minutos à espera de um batalhão de batas brancas. É mais ou menos por esta altura que costumo abrir os olhos, respirar de alívio, levantar-me para mais um dia a virar frangos. Mas hoje não há beliscão que me devolva ao conforto do colchão. Sou chamado por uma operacional dois palmos mais alta do que eu. Tem o cabelo apanhado atrás, uma placa que diz «Patrícia», e fala por monossílabos – ok, é um filme português; até porque se fosse francês, não usaria sutiã. Sou conduzido a uma porta mais adiante. Estou agora numa sala climatizada, com um vidro a separar-me de uma espécie de régie. «Deite-se na marquesa, isto dura 20 a 30 minutos, vai ouvir sons muito ruidosos, até já», diz-me um pequenote (de bata branca, claro). Ai Jesus que lá vou eu. Queira o estimado leitor saber que isto não é a sinopse da minha primeira longa-metragem, mas sim o relato acagaçado da minha primeira ressonância magnética. E se há epifanias que fazem mudar, por completo, a nossa relação com o mundo, esta situação – estando longe de ser fabulosa – fez, pelo menos, com que mudasse a minha relação com o medo (que não me assistia, como se usa dizer agora) de dar por mim acordado, fresco como uma alface, mas sete palcos abaixo do chão que piso todos os dias. Remetido ao interior de uma urna, sem escapatória, e na companhia de uma banda-sonora infernal que não desejo ao maior acólito de Skrillex, ponho em causa pela primeira vez a minha mais firme convicção de que enterrado vivo não irei desta para melhor. Por dolorosos 20 a 30 minutos, sinto-me como o Ryan Reynolds no Buried (Rodrigo Cortés, 2010), mas sem telemóvel, isqueiro, ou um cutelo afiado. E ali dentro, apesar de mais arejado do que Reynolds, foi nele e no seu fado que pensei. Abandonado à sua sorte num caixão exíguo, claustrofóbico, e com uma gama de recursos à qual só Angus McGyver conseguiria dar sentido, Reynolds é Paul Conroy, civil norte-americano no Iraque, condutor de pesados sequestrado por malfeitores e com o oxigénio a conta-gotas. Depois de algum impasse – é aceitável que quando acordamos num caixão, precisemos de pôr algumas ideias em dia –, o pobre Conroy fica a saber, via telemóvel, que a sua vida vale 5 milhões de dólares e alguém vai ter que se chegar à frente com o vil metal. O que se segue é outro pesadelo comum a este que vos escreve: ter de fazer telefonemas para resolver coisas. Mas uma coisa é ligar à TV Cabo com a tanga de que preciso da Sport TV por motivos profissionais outra é ter que ligar a serviços de apoio a cliente para, digamos, evitar ter o mesmo fim que muitos dizem ter sido o do cantor Carlos Paião (mito urbano, diga-se). Estou eu a pensar nessa ironia macabra que é ter de ouvir «aguarde um momento, por favor» ou «entraremos em contacto consigo assim que conseguirmos resolver o problema» quando temos a vida por um fio, e – ao fundo do túnel – deixa-se espreitar a luz do dia. Ou a iluminação artificial da sala climatizada com aquele odor tipicamente hospitalar que agora me parece tão bem-vindo. Tudo menos electrónica à Skrillex. Tudo menos o pânico da morte de olhos abertos. «Tenha cuidado a descer da marquesa», diz-me outro operacional de bata branca. Tenho, sim senhor. E vou pôr-me na alheta. Ao contrário do que dizia a outra, estar vivo não é só o contrário de estar morto. Boa sorte, Paul Conroy. Vê lá se sais daí.

(publicado originalmente na edição de Novembro de 2012 da revista Loud!)

Phantom of the Paradise

Houve uma altura, no início da saudosa década de 70 do século XX, em que Brian De Palma se deixou de comédias de pândega e abraçou a nobre arte de acagaçar o próximo. O clique deu-se com Sisters, em 1973, acentuou-se com Obsession, em 1976, ano em que este nativo de Nova Jérsia (como Bruce Springsteen ou Jon Bon Jovi), definiu ainda mais a sua musa (e não falamos de Nancy Allen) com o inescapável Carrie (um pequeno interlúdio para uma confissão embaraçosa: durante anos, na pré-história deste meu fetiche pela semiótica do susto, julguei que «Carrie», canção dos suecos Europe, fosse uma homenagem ao clássico em que Sissy Spacek tomou dois banhos no mesmo dia). De Palma, trintão na década em que o bigode de Burt Reynolds valia mais do que a cláusula de rescisão de Hulk, continuou a sua caminhada triunfante até meados da década seguinte, ocasião em que se meteu, definitivamente, no «grande cinema» (ou seja, todo o que não entrará nesta página). Registe-se The Fury (1978), com Kirk Douglas e John Cassavetes (e insira-se aqui a expressão «sonho molhado» a troco de nada); o nervoso Dressed To Kill (1980), com Angie Dickinson, Michael Caine e uma Nancy Allen (companheira do cineasta) em ascensão; Blow Out (1981), com a mesma Nancy Allen (terceira referência em 4 mil e tal caracteres, um record pessoal) em posição de maior destaque (e o rapaz John Travolta em modo temerário, e um John Lithgow com a astúcia de um crocodilo); o estelar Scarface (1983), escrito por Oliver Stone, com Al Pacino a dar vida ao nome Tony Montana (e Tony Montana a dar vida ao nome Scarface); por fim, Body Double, festim de maus penteados em que durante boa parte do tempo julgamos que o nome de Melanie Griffith na ficha técnica é um erro de impressão. Antes de apurar este estupendo jogo de gato e do rato (comum a boa parte dos seus filmes), De Palma resolveu meter tudo no liquidificador para ver o que saía. Chegamos, assim, a Phantom of the Paradise, filme estreado um ano depois do tal «clique» (a transição para meandros sanguinolentos) e que se apresenta como uma mixórdia de terror, comédia, fantasia, ficção-científica, suspense e – tenham medo – musical. Mas calma, estamos em 1974 (dois anos depois em Portugal), a estética é glam-rock e as referências tanto vão de O Fantasma da Ópera e O Retrato de Dorian Gray como a Fausto, num enclave perigoso (no bom sentido) entre o repertório de Elton John na primeira metade dos anos 70, os primeiros delírios de Kevin Ayers e, inevitavelmente, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars, a fantasia glam de David Bowie. Phantom of The Paradise (que em Portugal se chamou O Fantasma do Paraíso) é o produto típico de uma era em que músicos e cineastas fumavam as mesmas pedras: conta-se a história do pianista/cantor esquizóide Winslow Leach (um «geek» de estatura alta que poderia ter sido pai de Erlend Oye, o ruivo espadaúdo dos Kings of Convenience), que é usado (e abusado; aqui faz sentido o cliché) por um produtor musical/svengali de pouco mais de metro e meio (e, já que estamos numa de comparações, nos lembra o atarracado mentor dos Da Vinci). Swan, assim se chama o produtor (interpretado por Paul Williams, dois réis de gente que viria a compôr «We’ve Only Just Begun» para a voz de Karen Carpenter e, surpresa!, escreveria a letra do genérico de O Barco do Amor), promete a Winslow projecção que este nunca conseguirá por si próprio, adjudicando-lhe a «sinfonia» que estreará Paradise, sala de variedades prestes a abrir portas. Winslow (magistral interpretação do recentemente falecido William Finley) é ingénuo e acaba na cadeia, primeiro, perdendo o controlo sobre a sua obra; depois volta a «trabalhar» (na rectaguarda) para o satânico vilão, adocicado pela promessa de que a obra-prima que engendrará será interpretada pela ingénua Phoenix (Jessica Harper, que veríamos, três anos depois, como protagonista de Suspiria, de Dario Argento), por quem se apaixona. Só que por esta altura, Winslow não só está desfigurado como perdeu as cordas vocais (e não precisamos de dizer a quem se deverá atribuir a culpa). É ele o «Phantom of the Paradise», vingativa personagem que procurará «corrigir» com grande estrondo todo o mal que lhe foi feito. Pelo meio, vemos uma ópera-rock que faria corar Pete Townshend. E sentimos saudades do tempo em que o cinema (e a música) se misturavam com «medicação» proibida. Mais droga para esta mesa, se faz favor.

(publicado originalmente na edição de Setembro de 2012 da revista Loud!)

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Visitor Q (2001)

Apetece-me começar por aqui: Takashi Miike tem 1 metro e 64. Um gajo está habituado a ver os tortuosos filmes deste japonês desaustinado e reza para nunca ter de o encontrar numa esquina escura. Em Audition (1999), sujeitou um viúvo às diabruras de uma jovem rapariga um pouco mais retorcida do que, à partida, poderíamos imaginar (ahhh, as vezes que a rapaziada não repetiu a cena do «cri cri cri cri» – sobre a qual não nos vamos, obviamente, alongar mas que não é propriamente uma ode aos grilos); em Ichi The Killer (2001) meteu-nos casa adentro um yakuza (fora-da-lei do piorio) sado-maso. Poderíamos continuar, mas desfilar cinematografias com o site do iMDB aberto na janela ao lado é vício geek no qual nos recusamos a incorrer. Takashi Miike só está bem a escangalhar (carne humana, principalmente) e, como temos dificuldades em separar a realidade da ficção, mantivemos respeito. Mas, caramba, 1 metro e 64?! Apesar de quase duas grades de cerveja mais alto do que Danny DeVito, sentimo-nos subitamente apaziguados. Entre as sanguinolentas obras supracitadas, Miike (52 anos por estes dias), urdiu uma obra mais obscura que, por razões que imaginamos de saúde pública, não passou do circuito dos festivais de cinema (habituais antros de depravação, do deboche e dos moleskines). Trata-se de Visitor Q (2000), espécie de jackpot absoluto da mente doidivanas, coquetel danoso que junta as secreções mais virulentas da psique oriental (sim, que do lado de cá somos todos do Vaticano). Se Visitor Q fosse uma long-drink, era uma que misturasse, em doses iguais, uísque, vodca, aguardente de cana, Pisang Anbon, vinho para temperar filetes de pescada e diarreia de bebé. Percebemos a hesitação dos programadores dos multiplex: era uma chatice pagar a alguém para andar de esfregona na mão de hora e meia em hora meia. Já se sente melhor? Então sigamos para uma sinopse maneirinha. Um repórter de televisão na mó de baixo e a braços com um problema de ejaculação precoce decide esboçar um documentário sobre sexo e violência na juventude. Vai daí, trata de ter sexo com a filha – que, vai-se a ver, é prostituta – e filma o filho a «enfardar» na escola. A criança, revoltada, desconta na mãe, que – ironia das ironias – também deduz para a segurança social por via dos rendimentos obtidos em actividade de libertinagem – e, cerejinha podre sobre o bolo, entope as suas veias com heroína. Chiça, que isto não é coisa pouca. A toada é tão hiperbólica como aquela cena de A Casa na Pradaria em que, depois de um monólogo dramático de uma figura hirsuta, todas as personagens desatam numa sessão de gargalhada à desgarrada que perdurou, acreditamos, até ao almoço do dia seguinte (aqui vai ela, para sua comodidade). Só que em Visitor Q não há risota nem benevolência exagerada de Michael Landon: há um pai que dá ares de samurai de subúrbio e, munido de faca de serrilha, escarafuncha o escalpe de um dos petizes que desancam no filho («isto é um festival!», exclama, possuído) e uma mãe que, no intervalo de mais um chuto, arremessa uma chave de fendas contra a cabeça de outro colegial (não costumamos ser tão generosos, mas cá vai disto). O quotidiano ensandecido é presenciado por uma visita (Q, claro) que observa esta vidinha pacata de facas de talho a fazer rasantes a crianças, frases como «até um cadáver consegue ficar molhado», e leite materno saído directamente de um «seio heroinómano». Neste desafio à criatividade javarda (imaginamos Miike com os amigos ao despique: «epá, e se a velha der no cavalo?»; «e se o gajo tiver a pila murcha?», «e se…») deve residir, suspeitamos, uma reflexão sobre a cultura japonesa. E se Miike, caga-tacos comprovado, já não nos mete medo, nipónicos deste calibre preferimos ver ao longe (até puxámos o sofá para trás quando arrancou o DVD).

(publicado originalmente na edição de Agosto de 2012 da revista Loud!)

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

The Devil's Rejects (2005)

Há quem diga, com nítido entusiasmo, que não passa seis meses sem comer uma caldeirada de peixe numa aldeola piscatória não sei onde, que só ele sabe. Ou que sempre que passa pelas Azenhas do Mar lá vai mariscada de bradar aos céus e ai Jesus que aqueles percebes sabem a mar – tudo a favor de mariscadas orgásticas (oh sim, mais, mais), mas o saborzinho ao vil oceano é epifania que dispenso (e julgo que de acordo comigo estará toda a infeliz alma que teve o infortúnio de levar com uma onda na tromba numa ida à praia em 1985). Por aqui, apesar do apreço pelo bom marisco e do respeitinho pelo mar bravio, os vícios são outros. E há que assumir um deles, sem pruridos: já há uns bons três meses que não vejo um filme com pacóvios americanos, gente com espaço entre os dentes à Nel Monteiro, higiene íntima digna de um Beato Salú e uma propensão para interagir sexualmente à bruta com membros da família. Dirão que não preciso de recorrer à cinematografia ianque, que basta ver a Liga dos Últimos. Concordo, tirando a parte do sexo, que nunca mostraram. Mas perdoem-me por preferir, ainda assim, a ficção. No que diz respeito à cinematografia de Rob Zombie, homem que não será estranho aos leitores deste mensário, sou um atraso de vida: dele vi, antes de mais, a recriação de Halloween (não estragou, o que já merece aplauso) e, por parvoíce, decidi assistir primeiro a Os Renegados do Diabo (The Devil’s Rejects, título original), estando ainda por perscrutar a película que lhe deu origem, A Casa dos 1000 Cadáveres. Se vos falar de «sequela», é porque – claramente – li na internet. Mas ainda assim manda a sensatez sublinhar que Os Renegados do Diabo, a segunda longa-metragem de Zombie, de 2005, é – de facto – a sequela de A Casa dos 1000 Cadáveres, levada à tela dois anos antes. Tal como no primeiro (dizem-me), no filme que aqui se disseca acompanhamos uma família de pacóvios de província com uma tendência irreprimível para limpar o sarampo a terceiros. Para quem não está a ver, imagine-se o clã Ronaldo se o rapaz não tivesse jeito para dar uns toques e pusesse a família toda a trabalhar para o Alberto João Jardim. Logo a abrir, para entretenimento generalizado, há uma troca de tiros entre a malta do xerife local e a pouco garbosa família Firefly, responsável por um número de desaparecimentos superior à conta-corrente do consórcio Pepe/Bruno Alves. O que se segue é um bem engendrado arraial de porrada criteriosamente distribuída, com gente duvidosa a enfardar de gente ainda mais duvidosa, intriga entre foras-da-lei, badalhoquice entre foras-da-lei e respectivos interesses femininos, tudo passado num muito amarelo final dos anos 70, onde badalhoquice, foras-da-lei e, sobretudo, interesses femininos são coisas boas que nunca ousaremos reprimir (e expressões que, obrigação contratual, somos forçados a repetir). Não é do nosso feitio revelar mais do que é preciso, mas importa deixar claro que não estranhamos a ausência de uma parte 3 da saga – e já lá vão sete anos. Uma terceira divisão, série B, voltará sempre lá para o outono num pelado perto de si; recuperar de um par de calibre 10 no lombo já não me parece tão fácil. A família Firefly não terá o instinto de sobrevivência da pandilha tresloucada que Robert Englund (sim, o Freddy Krueger) lidera em 2001 Maniacs, outro filme de «hillbillies» a merecer consulta («You are what they eat» é o mote), mas somos tentados a simpatizar com a alarvidade de Captain Spaulding, uma espécie de Manuel Moura dos Santos sem nada a perder. Sem esquecer que filme onde entre, nem que seja por segundos, Michael Berryman («antepassado» do ex-árbitro Pierluigi Collina) tem, imediatamente, a Ordem de Mérito do Cagaço por serviços prestados à carnificina mundial. E isto não é coisa pouca.

(publicado originalmente na edição de Julho de 2012 da revista Loud!)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dead End (2003)

Não gosto de futsal. Mais depressa assisto a um torneio de matraquilhos às 5 da manhã do que a uma partida em que (nem sei quantos) jogadores correm atrás de uma bola e, quando dão por ela, já estão a trocar cromos com a trave da baliza. Dirá o leitor mais apressado que tamanha aversão resultará de um trauma de infância. Respondo-lhe que a pressa em vaticinar faz, neste caso, todo o sentido. Aos 9, 10 anos comecei a ter um sonho que se tornaria recorrente ao longo da minha vida de cagaços avulso: está um estádio de futebol (a sério, 11 contra 11, relva e uma bola de cautchu) a rebentar pelas costuras, recebo um passe à entrada da área (do argentino Burruchaga, normalmente; memórias do México 86), rodopio sobre mim mesmo, levanto a cabeça e afino a mira, puxo a culatra atrás, sai bomba directa para golo. O guarda-redes estira-se, mas cai desamparado sem tocar com uma unha na bola. Só que quando me preparo para levantar os braços, sou tele-transportado para um pavilhão gimnodesportivo onde, afinal de contas, disputo uma partida de futebol de salão com meia dúzia de marmanjos cada um mais coxo do que o outro. Nem sequer é golo; dou cabo de um holofote, acordo e resmungo. É quase como se um sonho molhado se tivesse transformado num pesadelo de incontinência. Ainda assim, é bem melhor ter um sonho recorrente (por mais aziago que se venha a tornar) do que um terror nocturno que nos visite mais vezes do que a conta certa. E nesse capítulo, valha a verdade, também tenho terapia a fazer. O meu cagaço-mor em hora de sono é estar sempre a voltar ao mesmo sítio, por mais voltas que dê, sem conseguir desencantar um caminho de regresso a casa. Não é apenas alarmante; é uma chatice. Ele é autocarro em zona remota que insiste em transportar-me para o local de partida; ele é passeata na mata que nunca acaba por sair da mata. Em 2003, depois de uma «greve» motivada pela disseminação da estética Sei o Que Fizeste no Verão Passado (um abominável sub-Scream) no cinema de terror, decidi voltar ao local do crime e senti-me como o emigrante que, de retorno à terra, já nem sabe o caminho para a padaria – recorde-se que no início da década passada o panorama do cinema extremo era dominado por raparigas defuntas com uma inesperada capacidade de se manter em pé, negros cabelos escorridos sobre a face e pouca articulação verbal (e eu, que era do tempo do cinema japonês que envolvia gueixas, ovos e o bispo de Bragança a benzer-se em intervalos regulares…). Por conselho amigo, contornei os asiáticos e entreguei-me a Dead End (Jean-Baptiste-Andrea e Fabrice Canepa, 2003) filme que por cá se chamou Terror Sem Fim. Em má hora o fiz: o filme é sobre uma família que quer passar o Natal em casa de um familiar e farta-se de dar voltas sem conseguir chegar ao destino, passando frequentemente por sítios onde já esteve. Ainda pior: os relógios «congelam» nas sete e meia, indício de que as coisas não vão melhorar. E realmente aterrorizador: no negrume da estrada (rodeada, claro, de floresta), aparece – vinda do nada – uma mulher vestida de branco com um bebé nos braços. Ou seja, o meu pesadelo recorrente em todo o seu esplendor, com o bónus de uma alva assombração que não vem sozinha. Rico serviço. Dead End tem um humor negro capaz de atenuar o trauma de reviver um pesadelo de infância (a histérica mãe de família, interpretada por Lin Shaye, é um achado) e, para filme que se passa sempre ora numa terrífica estrada sem fim, ora num carro falsamente apaziguador, sabe como entreter o incauto espectador. Que fica, naturalmente, com a sensação de que o resto do seu dia será um movimento de eterno retorno a um sítio onde já esteve. Já disse que não gosto de futsal?

(publicado originalmente na edição de Junho de 2012 da revista Loud!)

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Seed of Chucky (2004)

Conheci o velho Charles Lee Ray há uns bons vinte anos. Era pequeno, atarracado, vestia uma jardineira com uma camisola listada por baixo, olho azul rezingão, canto do lábio franzido à Billy Idol, cabelinho não demasiado curto, cor de fogo, com uma espécie de risco ao lado mal engendrado. Mandou-me logo à merda e ficámos amigos. Quem mo apresentou foi, crédito lhe seja devido, o primo do Diogo. Foi num fim de tarde e estávamos os três – eu, o Diogo e o primo – sentados no sofá da sala deste último. Aprisionado numa VHS no interior do videogravador não estava, por uma vez, uma amiga de Rocco Siffredi ou Nacho Vidal; estava o boneco Chucky. Child’s Play, fita de 1988 de Don Mancini, trataria de nos mostrar, nessa tarde, que Charles Lee Ray e Chucky são uma e a mesma pessoa. Anos depois, quando o filme se transformou em saga (chegou ao quinto tomo), e já na ânsia de reflectir sobre estas coisas do cagaço, cheguei à conclusão de que a história de Chucky é a história de um homem a querer sair do seu corpo (e como esta noção será útil mais adiante, meus amigos). Convirá, por ora, explicar que Child’s Play conta a história de como um bandido enclausurado no interior de um boneco daqueles que dizem «mamã, papá, sou teu amigo» procura, a todo o custo, voltar a ter uma existência real – para tal, perpetrando um sem número de patifarias. Charles Lee Ray é o «Lakeshore Strangler», criminoso que, à beira da morte, prefere recorrer a um ritual vudu para entrar no «corpo» de um Good Guy (a marca de um patusco brinquedo falante) em vez de sucumbir sem glória. Estamos perante o adorável mercenário que, respondendo a um considerando negativo por parte de uma idosa («ugly doll»), atira um bem afinado (e infalível) «fuck you!». Está claro que a vida não se torna fácil para Chucky que, filme após filme, continua sem arranjar maneira de voltar a ser o estrangulador carniceiro que já foi (ou seja, de reverter a maldição). Dez anos depois da estreia, com dificuldades em esticar mais a corda (o volume 3 introduz Chucky num colégio militar…), o realizador Ronny Wu apresenta uma nova personagem à trama: Chucky tem uma noiva, Tiffany, donzela de voz irritante que se transforma em boneca caprichosa. A «série» resolve, aí, tornar-se uma auto-paródia e Chucky, remendado pedaço a pedaço (daí as cicatrizes atrozes no rosto), é agora ainda mais revoltado e, como todo o revoltado a quem calha o azar de viver dentro de um boneco de cabelo ruivo, é involuntariamente cómico. Cereja em cima do bolo, depois de Bride of Chucky, chega em 2004 Seed of Chucky, o derradeiro filme da colecção – e, fechando o círculo, de novo com Don Mancini a escrever e a realizar. A «semente» é nada menos que Glen, filho de Chucky e Tiffany, fruto do amor virulento entre dois bonecos e – assim desejava o pai – possível sucessor das artimanhas do progenitor. Só que, ironia suprema, o esguio Glen não tem o fervor másculo do pai, não herda dele sequer a voz crispante (de Brad Dourif), magnífico rosnar apoquentado que nos habituámos a louvar. Glen é, digamos, um tanto ou quanto efeminado; acredita em valores (bizarros, aos olhos do pai) como a paz, o amor e a concórdia, é uma jóia de moço (mas que recorre à maquilhagem com propósitos distintos de um Gene Simmons). No fundo, parece – também ele – querer sair do seu próprio corpo (mas por outros motivos: quer ser Glenda). Sem perspectivas de vir, no futuro, a lançar morteiros no parque com os netinhos, Charles Lee Ray despediu-se para não mais voltar. Às vezes vemo-lo no eBay, novamente aprisionado, em action figures ainda mais pequenas e atarracadas. Desistiu de tentar.

(publicado originalmente na edição de Maio de 2012 da revista Loud!)

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Livide (2011)

Por inerência profissional, uma parte do que faço é ouvir discos do início até ao fim, repetidamente. Mesmo os que são maus logo ao primeiro desbastar do celofane envolvente. Ou os que denunciam a derrocada com o lettering manhoso do verso. Ou os da banda Pólo Norte. Atiram-me à cara que deve ser fantástico ter borlas para concertos; riposto que ninguém precisa de pagar para aceder a um local de trabalho. Concedo: é melhor do que andar a picar pedra. E, na verdade, é melhor do que muitas outras coisas, mas deixem-me cá manter o ar blasé. Portanto, entre outras coisas, ouço discos do início até ao fim. Fazer generalizações é sempre um pau de dois bicos (e os dois picam que se fartam), mas como qualquer pessoa que repete um processo, acabo por encontrar padrões na forma como a «coisa» acontece. Há, por isso, discos que começam em grande, alarves, comilões, com uma abastança tal que ainda não se chegou a meio e já temos que tomar os sais de frutos; outros há que não descolam, «morrendo» progressivamente até ao primeiro (demorado) ponto de interesse (normalmente o silêncio absoluto do final). O inventário de variações é, com o passar dos anos, cada vez maior: existem discos «biorritmo», aos altos e baixos; os discos «arquipélago», onde as boas canções se distribuem sem grande critério, rodeadas de charcos de desinteresse (e, no limite, os discos «ilha deserta», naturalmente menos cativantes); os discos «chouriço», que dão a volta e regressam, no final, ao ponto de partida (veja-se Sgt. Pepper’s, dos Beatles), unidos por um cordel ou agrafados com arame. Falamos de estruturas internas (e, como repararam, com um rigor científico a toda a prova), matéria suficientemente aborrecida para aceitarmos que, por esta altura, já se esteja desse lado a consultar o calendário do Euro 2012. Se exagerarmos na sua importância, Livide (Alexandre Bustillo, Julien Maury, 2011) faz lembrar o disco de estreia dos GNR, Independança: depois de um lado A que, praticamente, funda a pop em português, encontramos uma segunda face com uma única faixa de experiências de estúdio. As semelhanças ficam-se, ressalvamos, pela estrutura: Independança é um disco pop, não conta uma história (e podemos optar por não ouvir metade do disco), enquanto Livide tenta entrançar-nos numa (e não particularmente brilhante). Dos mesmos autores de À L’Interieur (um festim de hemoglobina e líquido amniótico), promete mundos e fundos, logo a começar com o plano inicial (zona costeira abandonada, uma cabeça decepada, largada na areia), mas quando é preciso fazer o que tem que ser feito (resolver a trama, encontrar as causas dos efeitos) espalha-se ao comprido com assombrações de vão de escada. Somos apresentados à jovem Lucy, que cumpre o seu primeiro dia de trabalho como auxiliar de assistente social. Vemo-la a visitar velhinhos incapacitados e a mostrar uma desenvoltura inesperada para quem, de chofre, tem de lidar com cuidados paliativos. Até que chega a vez de visitar a senhora Jessel, idosa em coma cerebral há vários anos, única moradora de uma enorme mansão a precisar de manutenção (é um filme de cagaço, lembremo-nos), algo afastada do povoado. Em jovem, Jessel era professora de dança e, reza a lenda, terá escondido um tesouro algures na casa. De regresso à aldeia, Lucy conta tudo ao namorado e este, sedento de deixar o negócio pesqueiro para trás, pega no irmão e, mesmo perante a relutância de Lucy, os três «embarcam» na caça ao tesouro. O resto da acção passa-se, claro, na casa misteriosa, ou seja, no mesmo espaço onde, menos imobilizada do que inicialmente se suporia, a senhora Jessel tenta proteger o que é seu (e, evidentemente, ocultar um passado sinistro). É a partir daí que o filme se perde, com um «sobrenatural» à Disney (e com muito menos javardice do que o filme anterior dos mesmos autores) a tentar mascarar uma flagrante incapacidade para contar uma história diferente de outras, já gastas, narrativas. Ocorre-me dizer que este filme não me é estranho – e se estão a pensar no programa de televisão com um nome parecido, então é porque me leram (bem) até ao fim.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

La Cara Oculta (2011)

Não vamos elencar os méritos artísticos das películas espanholas de terror – eles sabem que são bons –, mas apraz-nos sublinhar algo que não é despiciendo neste mundo atroz da carnificina no grande ecrã (ou no desconforto de um sofá escangalhado). E o que sublinhamos é a evidência de que as raparigas não são nada de err… deitar fora (prerrogativa que qualquer slasher dos anos 80 nunca enjeitou, mas que já vimos muito boa gente, depois, negligenciar). Concretize-se: La Cara Oculta (Andrés Baiz, 2011) tem predicados que ultrapassam o odor primaveril que pressentimos no corpinho airoso de Martina García, mas uma insistência inicial na nudez feminina antes de o filme ganhar, digamos, corpo (que não aquele de que estamos a falar), assume-se como estratégia infalível. Porque temos responsabilidades maritais, há que voltar à «vaca fria»: não é por maminhas ao léu que estamos nisto; La Cara Oculta não é sexploitation e, se quiserem uma analogia «distopicamente» rebarbada, as musas de Russ Meyer são widescreen para o exíguo Blackberry da nossa co-protagonista. Adrián é um maestro que se muda de Barcelona para Bogotá, na Colômbia. Consigo, vai a namorada Belén. Juntos, escolhem uma espaçosa casa de campo que uma senhora alemã, viúva, decide arrendar. Com a casa vem o cão. E com uma nova vida e nova orquestra (e nova violinista) para gerir, Adrián mostra-se algo titubeante na tarefa de se manter fiel. Belén, que trocou a cidade de Gaudí por uma algo inexistente Bogotá (Baiz quase não a filma, dando a entender que o financiamento colombiano não terá sido desmesurado), não é rapariga de se deixar ficar e, certo dia, Adrián chega a casa e não a encontra. No quarto, um bilhete que remete para a câmara fotográfica, onde Belén deixara gravada uma mensagem de despedida. Aflito, Adrián contacta a polícia, emborracha-se numa mesa de bar (como naquela canção triste brasileira que dá pelo nome de «Garçom»), e é «salvo» por uma «garçonete» local, Fabiana, que no dia seguinte já experimenta as molas da cama que era de Belén. A questão fulcral de La Cara Oculta é, claro, onde raio se terá metido Belén. Terá regressado a Barcelona? Foi raptada? Estará morta? E que casa é aquela, exílio de um oficial nazi (o falecido marido da proprietária alemã)? E porque é que a canalização já teve dias melhores? Tendo percorrido, interessados, a hora e meia do filme, já conhecemos as respostas e estamos aqui numa angústia para evitar o spoiler (neste blogue doravante designado como «estragação»): La Cara Oculta é um belo puzzle, uma história contada através de perspectivas distintas, concorrentes, que parecem querer tocar-se a determinado momento. E parte, afinal de contas, de um daqueles motes misteriosos que qualquer um de nós saberia esboçar numa noite de uísque em que, com embriagado (e embargado) entusiasmo, deixamos escapar um «ainda hei-de fazer um filme». Ainda bem que há quem os faça por nós, dizemos nós agora, a bebericar uma água das Pedras.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Mientras Duermes (2011)


Uma nota prévia: fôssemos nós realizadores de cinema e não hesitaríamos em recrutar Luis Tosar para abominar a vida da nossa delicada personagem-vítima (e afugentar os energúmenos que sobem as escadas do prédio à bruta de madrugada). Por isso, há que parabenizar o catalão Jaume Balagueró pela lembrança; Mientras Duermes é um «one man show» de Tosar que merece aplauso (e dentes cerrados para não borrar a cueca). Tosar, que aqui faz de César, porteiro de prédio, fere-nos de morte só com as sobrancelhas – e convenhamos que o poder de uma (quase) «monocelha» não deve ser menosprezado. Lembramo-nos dele, Tosar, como o marido violento de Te Doy Mis Ojos (de Icíar Bollaín) e ocorre-nos que César é essa mesma personagem, anos mais tarde, depois de tudo ter corrido (ainda) pior. Jaume Balagueró, o homem de Frágiles (com a Ally McBeal, caramba), Los Sin Nombre e Darkness volta a provar que é quando mais poupa em exteriores que as coisas lhe saem realmente bem – assim foi também em [REC], filme-catástrofe passado dentro de um bloco de apartamentos. Este apego ao terror caseiro começa-lhe, de resto, em Para Entrar a Vivir, uma das seis «películas para no dormir» que a nata do cagaço castelhano levou à televisão há uns anos. E no terror espanhol, esta vontade de ficar em casa também já foi amiga de Guillem Morales no excitante El Habitante Incierto com o qual este Mientras Duermes tem vários pontos de contacto. Tosar (ou César), já vimos, é um sinistro porteiro de prédio a fingir que é um tipo normal. Ora relativamente apreciado pelos habitantes (mas um pouco menos pelo senhorio), ora cordialmente ignorado, é um vigilante com funções alargadas (dá de comer aos cães da velhota, trata das canalizações) e um amor-próprio abaixo de zero que vai ruminando até transformar em revolta. Vive sozinho sem grandes pertences; a sua única confidente é a mãe, que está internada e não consegue falar. Primeiro pensamos que se trata de um tipo avariado, mas com hipótese de ter um fundo bom; depois percebemos que César é um psicopata que deseja, a toda a força, tomar posse de uma das habitantes do prédio, a jovem Clara: simpática, bonita, airosa, disponível, um pouco vulnerável. Para tal, engendra um esquema que lhe permite – não vamos dizer como – ter acesso ao reduto mais íntimo da rapariga (a cama) sem que ninguém (nem ela) saiba. Enche-lhe a casa de bichos (para, depois, colher os louros da desinfestação), infecta-lhe os cremes e as loções para que a moça desespere como comichões (e assim ter um motivo para se meter com ela), enfurece-se quando se apercebe que há um outro homem a disputá-la (com sucesso). A partir daí, como se costuma dizer por aqui, acontecem coisas. Balagueró consegue o improvável nestas aventuras do terror pica-miolos: não nos distrai com o que é acessório; vai completamente directo ao assunto, mostra-nos a abantesma no seu real esplendor. Os nossos olhos não se distanciam das sobrancelhas medonhas de César, das suas manobras truculentas, dos seus gestos obsessivos – é o tal «one man show» de que falávamos. O mesmo «show» que Tilda Swinton, do lado contrário da barricada, dá num certo filme temporalmente vizinho (mas que nós, pategos que somos, não achámos tão bom quanto se diz por aí). Precisávamos de ter falado sobre César, está mais do que visto.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Fritt Vilt (2006)

Falar de cinema escandinavo não é tão absurdo como meter Espanha e Portugal no mesmo saco e escrever por cima, a marcador, «cinema ibérico». Por cá, fadistas que somos, estamos a milhas do que os barulhentos espanhóis fazem na grande tela (e na Semana Santa em Viana do Castelo); se «descermos» ao cagaço, então, somos José Mourinho a levar 5 de Guardiola e a encolher os ombros no fim. Não é que Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca (no sentido dos ponteiros do relógio) façam, no que ao terror e fantástico diz respeito, uma e a mesma coisa (ainda que a mitologia viking possibilite pontos de contacto). De resto, manda a honestidade dizer que, baseando-me no meu fiel ficheiro Excel, não terei alguma vez visto película (exclusivamente) finlandesa – um mistério que hei-de resolver mal acabe estas linhas. No thriller/terror dinamarquês é inevitável destacar Ole Bornedal (Vikaren, Nattevagten, Kærlighed På Film), que se fosse um detergente seria, claramente, recomendado pelas melhores marcas de máquinas. Mas também gostámos de Midsommer, de Carsten Myllerup, especialmente por se passar em cenário universitário, e da secura desconcertante de Offscreen, de Christoffer Boe. Do país dos Ace of Base, aparentemente mais económico na produção de terror e associados, chegou-nos Den Osynlige (que teve direito a remake americano como The Invisible), o novamente «universitário» Strandvaskaren (de Mikael Håfström, cavalheiro que iria para a América fazer Derailed e 1408) e – em domínio vampiresco – o esquecível Frostbiten e o memorável Låt Den Rätte Komma In (do mesmo realizador que, surpresa, endereçou uma curta-metragem a Durão Barroso). Ponta de lança escandinava e pátria de Anni-Frid Lyngstad (a ruiva dos ABBA), a Noruega é um ver-se-te-avias: zombies nazis em Død Snø, vizinhança atrevida em Naboer, equipa de televisão às aranhas num bosque em Villmark, ecos de um passado trágico em Skjult, um abnegado caçador de trolls em Trolljegeren (um daqueles filmes que, infelizmente, se vão esgotar em discussões estéreis sobre CGI). Manda a nossa costela slasher (e a alta autoridade para o name dropping) dizer que o melhor, contudo, estará na saga Fritt Vilt (e vão 3), encetada em 2006, sob batuta de Roar Uthaug. Tem tudo: um grupo de amigos onde há moças bem-apessoadas, neve em abundância, um hotel abandonado, um vilão esquivo e uma história trágica que a memória (mas não os recortes de jornais) quase apagou. Jannicke, Morten Tobias, Eirik, Mikael e Ingunn vão de férias para a neve (redundância; estamos na Noruega, pá), sedentos de pôr o snowboarding em dia. Só que chegados ao manto branco, o rapaz de nome mais composto (Morten Tobias, uma espécie de Gonçalo Maria) parte a perna e a malta vê-se obrigada a pernoitar num majestoso hotel abandonado onde se passaram coisas más nos anos 70 (além de colarinhos enormes e calças à boca de sino). Escusado será acrescentar que o grupo não está sozinho e, em três tempos, acontece o que, em altruísta manobra anti-spoiler, denominaremos sempre de «coisas». Se quiséssemos ser «especialistas», elogiávamos agora o ritmo, a concisão, o equilíbrio perfeito entre os momentos de espera e os que fazem precipitar, de facto, o desenlace (e, a propósito deste, lembre-se que o filme tem sequelas). Mas não somos especialistas e preferimos torcer por Jannicke, a rapariga mais corajosa do grupo. E evitar todas as piadas sobre «room service», «wake up call» e outros recursos fáceis do jargão dos albergues.

terça-feira, 10 de abril de 2012

The Divide (2011)

Era António Guterres chefe do governo quando este que vos escreve enfrentou a sua primeira experiência profissional. Quatro horas por dia no serviço de informações telefónicas da Portugal Telecom – vulgo 118 – parecia, à partida, indolor (e os 70 contos davam jeito). Doze meses depois, sabia de cor os telefones da Maternidade Alfredo da Costa (RIP), da transportadora Luís Simões, do geral da RTP ou das louças Arcopal. Dei contactos do futebolista Oceano, de Júlio Isidro, do escritório do doutor Garcia Pereira, da editora discográfica dos Excesso. Tive de verbalizar localidades como Picha e descobri o telefone do Cardoso do Talho, que «fica aqui ao fim da rua» (a maior parte das vezes «o fim da rua» não era a Andrade Corvo, em Lisboa, mas uma ladeira em Traulitadas de Baixo). Ajudei a comunicar óbitos, a cobrar dívidas, a entregar prémios. Recebi propostas atrevidas de homens e mulheres, de crianças e idosos, com carinho e à bruta. Aprendi a falar devagar e a despachar-me depressa. E a dizer «obrigad' nós». Doze meses depois, tinha um ou dois fusíveis fundidos e uma vida pela frente. Certo, mais uma introdução biográfica e que raio tem isto a ver com um filme do ano em que Pedro Passos Coelho subiu à cadeira do poder? Três palavras: dinâmica de grupo. Então como agora, trabalhar com telefones não exigia um intelecto fervilhante (até é desaconselhável); mas para que o processo de recrutamento decorresse by the book, era preciso prestar provas. Exercícios que ajudassem o empregador a perceber se deste lado não estaria um carniceiro em série (ora aí está um filme por fazer: The Call Center Killer), ainda assim menos anedóticos do que as charadas da recruta militar. Um deles consistia em meter uma fornada de candidatos numa sala fechada para discutir questões como «quem salvaria em caso de catástrofe global: um médico, uma prostituta, uma criança, um pedreiro ou um atleta?». Mais do que uma resposta consistente, interessava observar err… dinâmicas de grupo. Ou seja, como quatro ou cinco marmanjos (e marmanjas) se relacionavam sem desatar à batatada. The Divide (Xavier Gens, 2011) é um desses exercícios, mas em cenário extremo: há uma série de explosões nucleares em Nova Iorque e os residentes de um bloco de apartamentos têm que se refugiar na cave do edifício para melhor protecção do perigo. Só oito conseguem fazê-lo antes de Mickey, o responsável pelo condomínio, selar a porta: um casal de namorados, dois irmãos e um amigo, mãe e filha, e um indivíduo sem filiação óbvia. Mickey toma as rédeas da situação, contrariado. É um antigo militar que faz da cave o seu bunker: tem mantimentos mas hesita em partilhá-los, disponibiliza a contra-gosto uma latrina para as necessidades da malta, manda calar quando a conversa não lhe interessa, recusa qualquer responsabilidade na protecção do coiro alheio. Os restantes defeitos da humanidade distribuem-se pelos outros: o casal está em vias de se separar, a traição é recurso aceitável ao cabo de poucas horas, cortam-se uns dedos a troco de pouco. O problema é que quase duas horas depois está quase tudo na mesma (excepto a saúde mental dos envolvidos, que muda para pior): o mundo lá fora está lixado, o melhor é ficar cá dentro a apodrecer. Xavier Gens quer contar uma história  de luta pela sobrevivência (reflectindo na tela as famigeradas dinâmicas de grupo), mas parece ter mais talento para filmar matança sem piedade (é dele o filme francês Frontières) do que para perscrutar as minhocas que toda a gente tem na cabeça. Ou seja, é mais 112 do que 118.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

10 Rillington Place (1971)

Aqui há atrasado, a reboque do elogio ao filme slasher, falávamos do serial killer como vilão pobre de recursos e algo monótono no exercício do seu passatempo. Que fique assente que não é nossa intenção dar ideias. O filme consagrado a essa figura reincidente na limpeza do sarampo de terceiros tem outros predicados – especialmente se for bom. A estampa psicológica de um Jason Voorhees nunca foi motivo de discussão (nem me parece que mereça; um slasher não tem que se preocupar com isso), mas a psique cabeçuda de um John Christie (o assassino do número 10 de Rillington Place, adiante apresentado) requer outro tipo de cuidados. Se o filme slasher, pela sua natureza funcional, coloca o acento tónico (ou o ácido sulfúrico, se quisermos ser mais literais) na forma como cada desgraçado é devolvido ao criador (ou seja, na evidência de que não se morre sempre da mesma maneira), o filme de serial killer é mais umbiguista: a vítima importa menos do que os labirintos mentais do seu carrasco. Não raras vezes, o filme sobre um assassino em série é inspirado em situações verdadeiras já dissecadas pela criminologia. Enquanto o slasher é fantasia (e humor e exagero, ao abrigo de um desviante código de honra), este é para mudar as fechaduras da porta. 10 Rillington Place é um filme inglês de 1971, realizado por Richard Fleischer e protagonizado por Richard Attenborough (o irmão mais velho de David, o homem que fez vida a devassar a privacidade de alces e cabritos-monteses). O ano é 1949. No número 10 de Rillington Place mora John Christie e a sua mulher, Ethel (personagem secundária, submissa, irrelevante). No piso de cima, está um apartamento para arrendar. Beryl e Tim Evans (o actor John Hurt) – casal pouco abonado, com uma filha (Geraldine) – tornam-se inquilinos. Mas sem dinheiro, entregues a discussões constantes e com a família prestes a crescer (Beryl está de esperanças), pouco lhes resta a não ser aceitar uma oferta generosa do extremoso senhorio, a quem devem o pagamento da renda – fingindo ter experiência médica, Christie oferece-se para praticar um aborto. O que se segue é o desencadear de um tenebroso caso verídico (que ecoa também acontecimentos anteriores), contado à boa maneira inglesa e com uma interpretação estupenda de um actor (Attenborough) que pensou duas vezes antes de aceitar o papel (não fosse levar com uma marreta ao atravessar a rua). Vem-nos à memória a estética dos filmes da Hammer (a produtora responsável pelos melhores cagaços bifes das décadas de 60 e 70), mas aqui não se brinca às histórias de arrepiar: o sacana do velho era mesmo levado da breca. Aos interessados pelo turismo do macabro: Rillington Place não resistiu ao poder de um bulldozer (nem ao da toponímia: agora chama-se Runston Street).

sexta-feira, 30 de março de 2012

The Children (2008)

Não há que enganar: no cinema de terror, as crianças ou são vítimas ou são cruéis agentes do crime. Em qualquer dos casos, mostram-se rijas e engendram, afincadamente, os respectivos planos de fuga ou ataque. Raramente falecem – mas se tal sucede é porque o filme precisa de tamanho desaire para, digamos, existir (o caso do clássico Don’t Look Now). Se acreditarmos (e eu acredito mais ou menos) que o cinema do cagaço pode ser uma versão tétrica da vida lá fora, então é justo assumir que há quase cem anos se transportam para a tela os reais medos do desconhecido. Cagaços de meia-noite que se materializam em demónios invisíveis, fantasmas do passado, criaturas bizarras do futuro ou do espaço, animais imprevisíveis (e imprevisível tanto pode ser uma aranha como um crocodilo) e – aí vêm elas – crianças. A psicanálise fica para outro carnaval (ou reunião de pais); interessa aqui assinalar a intemporalidade e a universalidade do tema. Do filhote chifrudo de Rosemary, no clássico de Polanski (que o meu DVD comprado em Espanha designa de La Semilla Del Diablo) às infantes almas penadas do cinema asiático do século XXI, sem esquecer The Omen e seus sucedâneos. The Children, do inglês Tom Shankland, evoca – sem querer – palavras cantadas por Carlos do Carmo: «Parecem bandos de pardais à solta / Os putos, os putos / São como índios, capitães da malta / Os putos, os putos». Eis-nos chegados a outra fórmula costumeira: a criançada que faz patifarias em bando. A canalhada, como se usa dizer para os lados do Douro. Casais amigos (ah, o que esperámos para usar esta expressão tão patusca) levam criançada para uma casa na neve, por alturas do Natal. Os pais são ingleses, bem-apessoados, copo de vinho branco na mão, lareira acesa, malhas de boa griffe, conta bancária a respirar saúde. As crianças são, enfim, crianças, naquela linha estreita entre o saturante e o adorável (e é por isso, no fim de contas, que gostamos delas). Pequenos incidentes ocorrem, prontamente desvalorizados. Os pais, claro, não desconfiam dos petizes. A miudagem não se deixa apanhar. Até que a coisa descamba. Como sempre, não nos alongaremos no que a acção, a seguir, nos dá a ver. Podemos, porém, afiançar que se coisa semelhante acontecesse connosco, já teríamos pegado no carro e dado de frosques – mas, hélas, ainda não somos pais nem entramos em filmes bifes. The Children vinga (e vinga bem, já que perguntam) porque se dá bem com os contrastes: vermelho vivo (do quê, adivinhe-se lá!) sobre brancura de neve; brutalidade em contexto de concórdia natalícia; traição em ambiente familiar de insuspeita tranquilidade. É a antítese do filme «mitra» inglês, em que a insalubridade do meio já antecipa (ou prepara) algo de negativo. Gostámos? Pois claro. Mas já vimos publicidades menos eficazes ao sexo com preservativo.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Baghead (2008)

Horror, deboche, degredo: o estigma social. Para um pai, petiz que mostre simpatia pelo cinema do calafrio (queríamos dizer «catanada», mas vamos com calma) está, obviamente, no lado errado da vida – e acabou-se a semanada. A família junta-se em pânico, planeia-se uma «intervenção»: há que pôr termo ao vício danado, há que devolver o pequeno Paulo Jorge (nascemos nos anos 70, não vamos em Salvadores e Martins) ao mundo dos vivos e saudáveis. «Se conseguimos com o chamon…». Paulito resiste, fecha-se no quarto, empurra uma estante cheia de VHS de filmes censurados contra a porta (o vídeo de Driller Killer, empenhado assassino do berbequim, cai e espatifa-se no chão), reza a Freddy Krueger para que lhe apareça em sonhos. A sua raiva é a de Damien, o pequeno demónio de The Omen; os olhos são os de Damian Marley, inebriado que está pela ganza resgatada ao fundo falso de gaveta onde jaz também a primeira longa-metragem de Traci Lords. Seguro de si, coloca a máscara de um dos irmãos Cavaco (referências nacionais da evasão de cadeias), abre a porta e pergunta: «é outra vez lulas para o jantar?». Isto poderia ser o mote de um filme (mau) dos anos 80, mas é só uma maneira enviesada de aludirmos a um pudor muito próprio do cinema do cagaço: um vilão só dá a cara a muito custo. Há quem o faça por necessidade estética (a face de Jason Voorhees é imprópria para consumo, daí a máscara de hóquei), por incapacidade prática (Chucky está aprisionado no interior de um boneco), e por desleixo ou falta de recursos: eis-nos perante Baghead, um maltrapilho que faz das suas com um saco na cabeça. Em Portugal, cobriria a cabeça com um saco de plástico do talho da esquina; numa América «indie» e ecologicamente responsável, estamos perante a opção papel (é assim que eles transportam as compras; seria também assim que um português perderia metade da fruta pelo caminho). De baixo orçamento, Baghead é cinema sobre cinema, solução capaz de transformar os clichés mais hediondos em pretensas ideias astutas (às vezes corre bem, conceda-se). Não é um filme sobre rapaziada que vai para uma cabana e é atormentada por um sacana com um saco na cabeça. É um filme sobre rapaziada do cinema que vai para uma cabana tentar escrever um argumento sobre um grupo de amigos atormentado por um sacana com um saco na cabeça. Rapaziada essa que vem a ser – vá-se lá saber porquê – sacaneada por um vilão nos preparos já referidos. Nitidamente com os trocos contados, os irmãos Duplass safam-se bem porque os actores têm jeito para a coisa. Entre rapazes e raparigas (2+2), há os traiçoeiros, os ingénuos, os cautelosos e os impacientes. Há uma cabana, um carro, uma floresta. E – já dissemos? – um malfeitor com um saco metido na cabeça. Para nós chega bem.

terça-feira, 27 de março de 2012

Missing / Sil Jong (2009)

Há uns anitos era ver-nos de cabeça enfiada naquelas piscinas de DVDs do Media Markt, onde cabem películas inenarráveis (e outras com o Steven Seagal na capa) e um sem-número de filmes infantis, enfeitiçados que estávamos pelas palavras mágicas «a partir de». A seguir vinha uma cifra em euros suficientemente baixa para nos fazer sujar as mãos – e acreditamos que alguma da poeira que depois retirávamos debaixo das unhas já ali estava desde a primeira vez que Jason Voorhees tirou o sarro a uma catana. Os erros eram comuns: primeiro, porque comprávamos filmes «a olho» (e isso explica, por exemplo, Forest of the Damned); depois, porque não era raro chegarmos a casa com uma pechincha «optimizada» para ecrãs 4:3 (o ecrã quadrado dos antigos televisores); por fim, porque comprávamos «ao quilo», gastando numa pilha de filmes inúteis o mesmo que poderíamos despender numa aquisição realmente valorosa. Poderia agora dizer que o tempo e a experiência me fez bem, que apurei o instinto, que me tornei um consumidor responsável, mas estaria a mentir com tantos dentes quantos os de Chucky quando nos pede amizade. Agora adepto do comércio online, faço ainda pior, tornando o que era antes um ingénuo hábito de «digging», prática autorizada pelo livro de estilo do coleccionismo (não obstante a parca higiene da tarefa), numa tendência compulsiva para a compra metódica. Paradoxo? Eu explico. Trata-se da compra que obedece a um único critério: a colocação do preço por ordem crescente. Começa-se no euro e pouco e vai-se subindo, galgando mono atrás de mono, escarafunchando no entulho, sempre na esperança de encontrar o que falta. Como «o que falta» não aparece, vai-se comprando o que não falta. É uma tragédia a que assistimos, impotentes, na condição de protagonista. Missing (Sil Jong, no original sul-coreano, de Kim Sung-Hong) apareceu-me assim, sem agasalho, tremeliquento e choroso, a pedir uma mão amiga. Dei-lhe 6 euros e pouco e trouxe-o para casa. Agradecido, não demorou a atiçar-me: na capa lê-se qualquer coisa como «a fazer jus a Sexta-feira 13». Conta-se a história de uma jovem actriz que vai de viagem para o campo na companhia de um realizador, esperando que este lhe dê o papel que tanto deseja. Os dois resolvem parar para comer uma sopa de galinha e são recebidos por um homem de meia idade, feliz proprietário de um rottweiler e de uma série de barracões propícios ao encarceramento de inocentes. Não é preciso dizer que a personagem masculina passa rapidamente à história e a bela Jeon Se-hong (a actriz) fica à mercê da caixa de ferramentas deste nosso «redneck» sul-coreano. Até que a irmã da actriz (Chu Ja-Hyeon), também ela bem parecida (mas um número abaixo, pormenor que se revelará importante) se põe a caminho para ver o que se passa. A existência desta segunda etapa (primeiro uma irmã, agora a outra) incute um valor acrescentado a Missing, fita que ameaça ser daquelas intermináveis sessões de tortura, mas que até economiza na ostentação do sofrimento (qualquer visita ao dentista será mais explícita) e vinga quando nos conta a história do gato e do rato. É a prova de que assomos consumistas de madrugada podem, às vezes, dar bom resultado. Mas não diga que vai daqui.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Absentia (2011)

Em Novembro do ano passado, este que novas vos traz foi agraciado com um aparelhómetro da Apple que rapidamente se assumiu como a coqueluche das telecomunicações lá de casa. Além de ter relegado os restantes telefones móveis para um apertado bolso das calças (sim, porque o iPhone afinfou-se logo ao casaco), relegou também o gato para outro espaço da casa (aquele onde o bicho da Apple não está a carregar), não vá o choque de titãs resultar em danos para qualquer uma das partes (mas sobretudo para o mai’novo, que ainda não se sabe defender). Isto para dizer o quê? Que a mera condição de proprietário de um iPhone me incutiu, fugazmente, aspirações à feitura de uma curtíssima metragem – a mui retro aplicação 8mm tem o condão de nos fazer acreditar e há um prédio com a fachada (e o que sei lá mais) em ruínas na rua. Digo fugazmente, porque as minhas perdas de juízo são, por enquanto, erupções de curta duração e alguém tem de fazer o jantar. Absentia (Mike Flanagan, 2011) parece ter sido feito com não mais de 15 contos, mas foi dinheiro bem aplicado. Topa-se a milhas que é produção independente (e independente, sobretudo, do capital que permite comprar maquinaria cara), que os actores são compinchas do realizador e terão sido pagos em senhas de refeição, que o catering não terá passado de água com groselha e línguas de gato. Não basta ter uma boa história, mas ajuda. Daniel, o marido de Tricia, está desaparecido há 7 anos e apresta-se para ser declarado «morto por ausência». Tricia quer «enterrar» definitivamente Daniel mas não consegue: continua a «vê-lo» nos sonhos, nos espelhos, em toda a parte. Callie, a irmã mais nova, acorre para ajudá-la a preencher a papelada do óbito e aproveita para passar por ali uns tempos. Quando Tricia se prepara para levar a vida em diante (na companhia de um generoso detective que acompanhou o caso), um acontecimento que, deliberadamente, vamos omitir (e não é por pirraça) muda o «estado de coisas». Paralelamente, a irmã – que trouxe consigo uma caixinha de drogaria – começa a suspeitar de um túnel mesmo ali ao pé de casa, uma espécie de portal «engolidor». Precisamente por causa da drogaria, não é levada a sério e é também por isso que o filme tem uma hora e meia. Absentia poderia ser uma curta-metragem económica, intrigante e eficaz; como longa, é igualmente económica e intrigante, mas menos eficaz na manutenção do mistério. Talvez estejamos a valorizar demasiado a ideia – e menos a sua prossecução –, mas já em criança era o jogo das escondidas que nos metia mais medo. E, valha a verdade, é por causa do cagaço que aqui estamos.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Secuestrados (2010)

Há uma altura nesta nossa aventura no planeta Terra em que conseguimos sustentar a validade e a pertinência do nosso discurso (e da nossa vida, porque não?) com base em duas atitudes antagónicas: o recurso a todo e qualquer cliché que ajude a emoldurar a nossa forma de agir ou de pensar; ou a recusa absoluta de frases e procedimentos usuais, numa extenuante demanda de originalidade. As duas atitudes são sustentáveis ou insustentáveis consoante a matéria-prima dos seus «portadores» – normalmente quem está a meio caminho entre as duas posições e não é obrigado a pensar na vida nestes termos é que a vive como deve ser (o que nos coloca, desde já, do lado de fora deste clube). Mas uma coisa é a vida (e as dívidas, e se vamos tomar o café no sítio do costume ou no outro que baixou o preço, e por que é que não se fez nada de jeito no fim-de-semana); outra é o cinema de terror. Aqui, assumimos, não nos dá muito que pensar o embate com o cliché: ajuda-nos a negligenciar a subjectividade, a cancelar temporariamente a dúvida, a opinar sobre coisas sem o peso da definição. É por isso que vamos sempre abordar os longos cabelos negros sobre as faces das esquálidas criaturas defuntas do cinema asiático sem precisar de esclarecer logo que «asiático» é uma generalização para sul-coreano, japonês e, aqui e ali, tailandês; é por isso que dizemos que o cinema espanhol reflecte a vida espanhola tal como ela nos parece que é, e que os diálogos são trepidantes porque, na realidade, eles não se calam (tal como atestado nas visitas que nos fazem por altura da Semana Santa); e em Portugal não existe cinema de terror porque resolvemos os nossos medos a rir (o que é uma estupidez, porque depois o que tem realmente piada é recebido com suspeição). Da mesma forma que se diz que a noite do Porto é sempre uma animação (uma asserção que enerva mais do que orgulha os autóctones), também se dirá aqui – sem pensar duas vezes – que o cinema de terror/suspense espanhol nunca nos deixou ficar mal. E nem vamos lá atrás, a Narciso Ibañez Serrador ou aos zombies cegos de Amando de Ossorio; vamos ao Alejandro Amenábar de Tesis (e, depois, Abre Los Ojos e The Others), ao Aléx de La Iglésia do estonteante El Día de La Bestia (e, já fora do terror, La Comunidad), ao mexicano Guillermo Del Toro, a Jaume Balagueró, Paco Plaza, Mateo Gil, Isidro Ortiz, Juan Antonio Bayona, Nacho Cerdà, Nacho Vigalondo (do estupendo Los Cronocrímenes), Guillem Morales, Elio Quiroga, F. Javier Gutiérrez, Laura Mañá, Rodrigo Cortés e Koldo Serra (perdoai-nos, Senhor, o name-dropping). Secuestrados (Miguel Ángel Vivas, 2010) é um caso curioso porque se demite do «cliché espanhol» para abraçar, sem reservas, um dos maiores lugares-comuns (e estamos no domínio do elogio) do cinema francês de choque e horror: a invasão do lar com consequências ao nível da carne picada. OK, os créditos indicam co-produção entre os dois países que nos estão mais perto por via terrestre, mas um dos pontos de contacto mais oportunos até pode ser, neste caso, o seco Funny Games, apesar de em Secuestrados a violência ser mais óbvia (e, paradoxalmente, menos penosa de testemunhar) do que no filme de Michael Haneke. Para um cheirinho, o resumo do IMDb não deslustra: três criminosos com pronúncia da Europa de Leste irrompem numa casa localizada num condomínio privado em Madrid, fazem dos seus habitantes reféns e obrigam o patriarca a dar uma voltinha de carro para esvaziar os cartões bancários da família. É uma ordem de trabalhos lixada e não há aqui delicadezas. Como também não há artifícios barrocos na forma de Vivas filmar a peripécia, engendrando um tempo-real através de planos-sequência e, lá mais para a frente, dividindo o ecrã em dois (e sobre tecnicidades já fomos demasiado longe). Sobra um interessante exercício de frieza, assente num desancar implacável de inocentes que se esgatanham pela sobrevivência. E sobre o que mais sobra ou deixa de sobrar ficamos por aqui.

quinta-feira, 15 de março de 2012

The Tunnel (2011)

Iscas de fígado podem ser feitas, essencialmente, de duas maneiras: fritas em cebolada ou grelhadas com uma discreta pitada de sal. Por aqui recorre-se ao órgão hepático alheio quando passa da hora de jantar e a alternativa resume-se a conservas de sardinha em molho de tomate. Geralmente, grelha-se porque demora menos – o objectivo de nos entregarmos a este eterno inimigo do consenso (ainda assim, a causar menos repugnância do que o bucho) é, mais do que lambermos os beiços de prazer, não perder o mesmo tempo que uma refeição complicada de confeccionar deverá requerer. Isto é, mata-se a fome porque é preciso. The Tunnel (Carlo Ledesma, 2011) estará para as iscas de fígado como O Labirinto do Fauno para os filetes de polvo com arroz do mesmo. Com o primeiro matamos a fome (de cagaço) num instante, cumpre-se a função sem mais delongas; o segundo é como aquela refeição que nos fica na memória (e a trabalhar no estômago) e não tem propriamente uma finalidade (além de gerar satisfação). The Tunnel é também um descendente de Blair Witch Project, fita «novelty» que nos prendeu a um cadeirão do Monumental em 1999 e que – intencionalmente ou não – nos fez recordar que o medo do escuro pode ser uma coisa muito mais sinistra do que os pedopsiquiatras bonzinhos querem fazer crer. Por aqui, assume-se a fraqueza (ou a disponibilidade ingénua para ser acagaçado): há dias em que acender as luzes ao longo do corredor é boa ideia (especialmente depois da meia noite); e ainda não recuperámos daquela tarde nos labirintos subterrâneos da Quinta da Regaleira em que só flashes constantes da câmara fotográfica nos salvaram do passo em falso. Doze anos depois de Blair Witch, o potencial de medo é discutível e o êxito de um sucedâneo está, sobretudo, dependente das abébias que estamos dispostos a dar. Dar uma hipótese a The Tunnel é aceitar entrar no jogo, é aceitar passar por cima de uma história corriqueira – projecto governamental envolto em suspeitas e equipa de repórter e cameramen que se põe a caminho sem ninguém saber. A carnificina (estavam à espera de quê?) decorre numa rede de antigos túneis de caminhos-de-ferro debaixo da cidade de Sydney, e o espectador, à semelhança do que acontece com Blair Witch Project, não vê muito bem o que acontece (mas fá-lo na perspectiva do infeliz que carrega a maquinaria). Primeiro segue-se em frente, depois chega a altura de fugir. Primeiro o optimismo, depois o arrependimento. É como comer fígado ao jantar.

segunda-feira, 12 de março de 2012

The Stepfather (1987)

Gostava de discorrer sobre 1987 como se lá tivesse estado – e estive, provavelmente a comer caldeirada de petingas em casa da minha avó paterna. Sobre 1986, terei sempre o Mundial de Futebol do México e uma caderneta de cromos da Panini que não me deixa mentir; em 1988 houve o Europeu e a Holanda e o Van Basten. Mas 1987 é um buraco na minha memória; tenho a certeza de que andei por lá, de calções no Verão e Kispo no Inverno, mas apenas isso. Serve este intróito para apresentar a temática do «estive lá e trouxe esta cicatriz no joelho» vs «estive lá porque me contaram» (ou «estive lá porque li na internet»). E para deixar claro, antes de mais, que não vi The Stepfather no ano em que se estreou no cinema, nem no que veio a seguir, nem sequer vinte anos depois. Tê-lo-ei visto com idade suficiente para exclamar, aos primeiros minutos, «espera lá, mas isto é o Locke do Lost com cabelo!». The Stepfather (Joseph Ruben, 1987) tem como protagonista Terry O’Quinn, o actor que viria a tornar-se mundialmente famoso através da série que desalojou o Championship Manager do trono dos meus hábitos compulsivos. Vê-lo aqui, no final dos anos 80, sem a t-shirt transpirada, nem cabelo rapado e isento de convicções metafísicas é uma surpresa. E não adianta lembrar-me, a todo o momento, que este ainda não era o Locke do Lost; o próprio Lost mostrou-nos que confiar na linearidade do tempo é um logro. Este Locke do passado é – fica desde logo claro – um assassino em série sempre pronto para outra. Para trás, uma família dizimada; na bagagem, o estritamente essencial para recomeçar vida nova. Falar aqui de vida é relevante: Henry (o nome que resolveram dar ao nosso Locke) quer ter uma, pelo menos durante algum tempo. É um serial killer familiar: infiltra-se num agregado sem marido/pai, seduz a mãe, tenta comprar o/a filho/a com oferendas, acabará por limpar o sebo a todos quando estiver com a mosca. Aqui vemo-lo um ano depois da última «limpeza», a fingir ser um mediador imobiliário chamado Jerry Blake, casado com Susan Maine (viúva) e padrasto de Stephanie, adolescente com a sua dose de neura. Como seria de esperar, a mãezinha cai no engodo; a filhota nem tanto. A história de The Stepfather é a história de um vilão a retirar, progressivamente, a maquilhagem; de um anjo da guarda a transformar-se num matador obstinado; de um projecto de pai a transformar-se num filho da mãe. Locke (ou Terry O’Quinn) convence-nos: também em Lost o vimos, extremoso, a construir um berço para o filho de Claire para, a seguir, fazer ver a Jack que o protagonista da série não tem que ser o salva-vidas. A persistência jogou a favor dele: sabemos que dois anos depois lambeu as feridas, deu de frosques de um hospital psiquiátrico e voltou ao activo (eis-nos perante The Stepfather II). É mesmo à Locke.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Happy Birthday To Me (1981)

Bastaria o poster para que Happy Birthday To Me merecesse lugar cativo por estes lados, mas este slasher de 1981 tem predicados suficientes para saciar a fome (que não de kebab) dos acólitos do cagaço. E parte, diga-se, de um dos motes mais descabidos (e, já que falamos do que falamos, também mais a propósito) do género. Dado a incisões com arma ferrugenta, arapucas medievais e quejandos, o slasher tem – na sua infinita capacidade de reinventar a morte tragicómica – um sentimento de culpa incrustado: precisa de um pretexto para justificar a mortandade. A mera existência de um tipo baralhado que começa a aviar carcaças não chega; é necessário mostrar por que é que a figura (normalmente mascarada) existe e está enamorada com a sua gama de recursos para extinguir o próximo. Em busca da tal ética, o slasher vai ao calendário e põe a malta a avariar em feriados e dias especiais: temos, então, a noite das bruxas em Halloween; a aziaga sexta-feira dia 13 em…err… Sexta-feira 13; o dia das mentiras em April Fool’s Day; o Natal em Black Christmas; o dia dos namorados em My Bloody Valentine. Mas como os dias especiais são limitados, não é de desaproveitar o charme discreto de uma certa jornada móvel, fixa na vida de cada um de nós (se tudo tiver corrido bem), mas variável de ser vivo para ser vivo: o dia de anos. A razão pela qual até somos tentados a compreender um infeliz com a roupa manchada de sangue e machado na mão prende-se com a pura necessidade de obtermos uma autorização para testemunhar uma série de crimes a brincar (é cinema, amigos). «Ele é assim porque, caramba, não se aguenta quando o dia a seguir ao 12 calha numa véspera de fim-de-semana; ele é assim porque é dia das mentiras, pá, tem direito a pregar umas quantas partidas e a diminuir a densidade populacional da sua comunidade; ele é assim porque o Pai Natal nunca lhe deu uma metralhadora de brincar; ele é assim porque não aguenta jantar sozinho no dia dos namorados». Realizador inglês (J. Lee Thompson, nascido quatro anos depois da minha avó que viveu mais) a filmar no Canadá dá a Happy Birthday To Me uma aura de culto, mesmo que o tal pretexto seja o mais fácil (alguém faz anos, ena, que bom). Somos apresentados a Ginny (Melissa Sue Anderson, uma das petizes de Uma Casa Na Pradaria), rapariga popular num liceu privado e membro de uma elite composta por alguns dos adolescentes mais abastados (e obnóxios) da escola. Ginny é gira, mas tem sequelas de um acidente perturbante sucedido no ano anterior. Ginny vai fazer anos. Os amigos de Ginny começam a morrer. Não vamos, obviamente, mais longe neste inventário de ocorrências, mas em benefício de Happy Birthday To Me não só há um prazer pelo macabro (e nesse reduto estamos bem servidos), como uma intenção bem concretizada de firmar um clássico, com inflexões que mais facilmente associaríamos ao meta-slasher dos anos 90, ao próprio género a reflectir sobre si próprio. Diríamos, se quiséssemos embrulhar isto com um perfume para oferecer, que «está à frente do seu tempo». Mas vamos rematar a coisa com um tímido «parabéns a você». É o que se diz, não é?

quarta-feira, 7 de março de 2012

Confessions / Kokuhaku (2010)

Que a vingança é um assunto assaz querido à cinematografia de terror oriental (dois países à cabeça: Japão e Coreia do Sul), qualquer domingueiro do cagaço já terá percebido – ou isso ou então temos tido uma pontaria desgraçada desde que, mais ou menos a meio da década passada, passámos a enfardar traulitada proveniente destes vizinhos banhados pelo Mar do Japão. A vingança no cinema destes países é uma instituição e tanto pode ser apanágio de seres que respiram o mesmo ar do que nós (e que se querem vingar de quem lhes riscou o carro), como de almas penadas que, no seu tempo de vida, foram atazanadas sem piedade por aqueles que agora serão perseguidos. Complicado? Muito menos do que decorar os nomes deles. Estar vivo é, aqui, o contrário de estar morto, como diria certa sumidade do reumatismo nacional – e é também o pormenor que permite saber quem é o protagonista (ou através de que ponto de vista vamos conhecer a história). Se estiver vivo, seguiremos os passos da personagem que andar à procura de quem lhe fez a vida negra, torceremos por ela e vamos dizer-lhe para se manter afastada de objectos cortantes ou ampolas com ácidos marados; se estiver morto, aparecerá ocasionalmente em flashes aterrorizadores, mas deixará o melhor (é como quem diz) do filme para o infeliz que descobrir aos poucos por que razão apareceu agora um fantasminha que lhe quer morder os calos (normalmente por causa de um azar na escola que acabou com alguém a ir desta para melhor). Variações criativas desta matriz correram bem ao sul-coreano Park Chan-wook, autor da trilogia sagrada do ajuste de contas, Sympathy for Mr. Vengeance (2002), Oldboy (2003) e Lady Vengeance (2005). Louvar a criatividade é dupla parabenização: há bom cinema, não haja dúvidas, mas também há um leque multifacetado de recursos à disposição de quem pretende (e ó se pretende) infligir dor no outro. Há uma abordagem profana do terror barroco: não é chegar, mocada no cachaço e tenho onde estar às duas e meia; pelo contrário, segue-se uma receita, um itinerário macabro, um roteiro minucioso com uma tendência inevitável para acabar em mal (atente-se que estamos a falar do cinema que nos ensinou a retirar um rim sem precisar de mandar o resto do corpo para o galheiro). Confessions (ou Kokuhaku, do japonês Tetsuya Nakashima) investe na temática da vingança, transportando-a para a sala de aula de uma escola secundária (vem-nos à memória a saga sul-coreana Whispering Corridors). Vemos alunos excitados e uma professora surpreendentemente calma. Ela conta a sua história: a vida corria-lhe bem até ao dia em que a filha aparece morta, afogada numa piscina. Pelas palavras da professora (e mãe), percebemos que a tragédia não é acidental e os presumíveis responsáveis – dois alunos – estão ali mesmo, na sala de aulas, à sua frente. A certa altura, julgamos que há um filme por acontecer, que o preâmbulo está feito e daí partiremos para a trivial reconstituição dos acontecimentos. Sim, tudo isto é verdade mas nunca se sai da narração na primeira pessoa: a vingança (porque há uma, claro) é desenrolada como um novelo, entrelaçando-se as linhas apenas para que tiremos o pulso à dimensão das outras personagens. Como em outros casos vizinhos, há um hiper-terror a que temos de nos adaptar – a vingança, para estes amigos do cagaço, não é um jogo de chinquilho que se adia porque está a chover; é coisa para picar o miolo. Damos por nós a pensar que «já chega, deixa lá isso», mas não nos é oferecido consolo em troca nem uma ténue esperança de escapatória. Esta vingança não é para meninos e mesmo nós já olhámos para trás para ver se vem gente.