sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dead End (2003)

Não gosto de futsal. Mais depressa assisto a um torneio de matraquilhos às 5 da manhã do que a uma partida em que (nem sei quantos) jogadores correm atrás de uma bola e, quando dão por ela, já estão a trocar cromos com a trave da baliza. Dirá o leitor mais apressado que tamanha aversão resultará de um trauma de infância. Respondo-lhe que a pressa em vaticinar faz, neste caso, todo o sentido. Aos 9, 10 anos comecei a ter um sonho que se tornaria recorrente ao longo da minha vida de cagaços avulso: está um estádio de futebol (a sério, 11 contra 11, relva e uma bola de cautchu) a rebentar pelas costuras, recebo um passe à entrada da área (do argentino Burruchaga, normalmente; memórias do México 86), rodopio sobre mim mesmo, levanto a cabeça e afino a mira, puxo a culatra atrás, sai bomba directa para golo. O guarda-redes estira-se, mas cai desamparado sem tocar com uma unha na bola. Só que quando me preparo para levantar os braços, sou tele-transportado para um pavilhão gimnodesportivo onde, afinal de contas, disputo uma partida de futebol de salão com meia dúzia de marmanjos cada um mais coxo do que o outro. Nem sequer é golo; dou cabo de um holofote, acordo e resmungo. É quase como se um sonho molhado se tivesse transformado num pesadelo de incontinência. Ainda assim, é bem melhor ter um sonho recorrente (por mais aziago que se venha a tornar) do que um terror nocturno que nos visite mais vezes do que a conta certa. E nesse capítulo, valha a verdade, também tenho terapia a fazer. O meu cagaço-mor em hora de sono é estar sempre a voltar ao mesmo sítio, por mais voltas que dê, sem conseguir desencantar um caminho de regresso a casa. Não é apenas alarmante; é uma chatice. Ele é autocarro em zona remota que insiste em transportar-me para o local de partida; ele é passeata na mata que nunca acaba por sair da mata. Em 2003, depois de uma «greve» motivada pela disseminação da estética Sei o Que Fizeste no Verão Passado (um abominável sub-Scream) no cinema de terror, decidi voltar ao local do crime e senti-me como o emigrante que, de retorno à terra, já nem sabe o caminho para a padaria – recorde-se que no início da década passada o panorama do cinema extremo era dominado por raparigas defuntas com uma inesperada capacidade de se manter em pé, negros cabelos escorridos sobre a face e pouca articulação verbal (e eu, que era do tempo do cinema japonês que envolvia gueixas, ovos e o bispo de Bragança a benzer-se em intervalos regulares…). Por conselho amigo, contornei os asiáticos e entreguei-me a Dead End (Jean-Baptiste-Andrea e Fabrice Canepa, 2003) filme que por cá se chamou Terror Sem Fim. Em má hora o fiz: o filme é sobre uma família que quer passar o Natal em casa de um familiar e farta-se de dar voltas sem conseguir chegar ao destino, passando frequentemente por sítios onde já esteve. Ainda pior: os relógios «congelam» nas sete e meia, indício de que as coisas não vão melhorar. E realmente aterrorizador: no negrume da estrada (rodeada, claro, de floresta), aparece – vinda do nada – uma mulher vestida de branco com um bebé nos braços. Ou seja, o meu pesadelo recorrente em todo o seu esplendor, com o bónus de uma alva assombração que não vem sozinha. Rico serviço. Dead End tem um humor negro capaz de atenuar o trauma de reviver um pesadelo de infância (a histérica mãe de família, interpretada por Lin Shaye, é um achado) e, para filme que se passa sempre ora numa terrífica estrada sem fim, ora num carro falsamente apaziguador, sabe como entreter o incauto espectador. Que fica, naturalmente, com a sensação de que o resto do seu dia será um movimento de eterno retorno a um sítio onde já esteve. Já disse que não gosto de futsal?

(publicado originalmente na edição de Junho de 2012 da revista Loud!)