Não gosto de futsal. Mais depressa assisto a um torneio de matraquilhos às 5 da manhã do que a uma partida em que (nem sei quantos) jogadores correm atrás de uma bola e, quando dão por ela, já estão a trocar cromos com a trave da baliza. Dirá o leitor mais apressado que tamanha aversão resultará de um trauma de infância. Respondo-lhe que a pressa em vaticinar faz, neste caso, todo o sentido. Aos 9, 10 anos comecei a ter um sonho que se tornaria recorrente ao longo da minha vida de cagaços avulso: está um estádio de futebol (a sério, 11 contra 11, relva e uma bola de cautchu) a rebentar pelas costuras, recebo um passe à entrada da área (do argentino Burruchaga, normalmente; memórias do México 86), rodopio sobre mim mesmo, levanto a cabeça e afino a mira, puxo a culatra atrás, sai bomba directa para golo. O guarda-redes estira-se, mas cai desamparado sem tocar com uma unha na bola. Só que quando me preparo para levantar os braços, sou tele-transportado para um pavilhão gimnodesportivo onde, afinal de contas, disputo uma partida de futebol de salão com meia dúzia de marmanjos cada um mais coxo do que o outro. Nem sequer é golo; dou cabo de um holofote, acordo e resmungo. É quase como se um sonho molhado se tivesse transformado num pesadelo de incontinência. Ainda assim, é bem melhor ter um sonho recorrente (por mais aziago que se venha a tornar) do que um terror nocturno que nos visite mais vezes do que a conta certa. E nesse capítulo, valha a verdade, também tenho terapia a fazer. O meu cagaço-mor em hora de sono é estar sempre a voltar ao mesmo sítio, por mais voltas que dê, sem conseguir desencantar um caminho de regresso a casa. Não é apenas alarmante; é uma chatice. Ele é autocarro em zona remota que insiste em transportar-me para o local de partida; ele é passeata na mata que nunca acaba por sair da mata. Em 2003, depois de uma «greve» motivada pela disseminação da estética Sei o Que Fizeste no Verão Passado (um abominável sub-Scream) no cinema de terror, decidi voltar ao local do crime e senti-me como o emigrante que, de retorno à terra, já nem sabe o caminho para a padaria – recorde-se que no início da década passada o panorama do cinema extremo era dominado por raparigas defuntas com uma inesperada capacidade de se manter em pé, negros cabelos escorridos sobre a face e pouca articulação verbal (e eu, que era do tempo do cinema japonês que envolvia gueixas, ovos e o bispo de Bragança a benzer-se em intervalos regulares…).
Por conselho amigo, contornei os asiáticos e entreguei-me a Dead End (Jean-Baptiste-Andrea e Fabrice Canepa, 2003) filme que por cá se chamou Terror Sem Fim. Em má hora o fiz: o filme é sobre uma família que quer passar o Natal em casa de um familiar e farta-se de dar voltas sem conseguir chegar ao destino, passando frequentemente por sítios onde já esteve. Ainda pior: os relógios «congelam» nas sete e meia, indício de que as coisas não vão melhorar. E realmente aterrorizador: no negrume da estrada (rodeada, claro, de floresta), aparece – vinda do nada – uma mulher vestida de branco com um bebé nos braços. Ou seja, o meu pesadelo recorrente em todo o seu esplendor, com o bónus de uma alva assombração que não vem sozinha. Rico serviço. Dead End tem um humor negro capaz de atenuar o trauma de reviver um pesadelo de infância (a histérica mãe de família, interpretada por Lin Shaye, é um achado) e, para filme que se passa sempre ora numa terrífica estrada sem fim, ora num carro falsamente apaziguador, sabe como entreter o incauto espectador. Que fica, naturalmente, com a sensação de que o resto do seu dia será um movimento de eterno retorno a um sítio onde já esteve. Já disse que não gosto de futsal?
(publicado originalmente na edição de Junho de 2012 da revista Loud!)
(publicado originalmente na edição de Junho de 2012 da revista Loud!)