segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Visitor Q (2001)

Apetece-me começar por aqui: Takashi Miike tem 1 metro e 64. Um gajo está habituado a ver os tortuosos filmes deste japonês desaustinado e reza para nunca ter de o encontrar numa esquina escura. Em Audition (1999), sujeitou um viúvo às diabruras de uma jovem rapariga um pouco mais retorcida do que, à partida, poderíamos imaginar (ahhh, as vezes que a rapaziada não repetiu a cena do «cri cri cri cri» – sobre a qual não nos vamos, obviamente, alongar mas que não é propriamente uma ode aos grilos); em Ichi The Killer (2001) meteu-nos casa adentro um yakuza (fora-da-lei do piorio) sado-maso. Poderíamos continuar, mas desfilar cinematografias com o site do iMDB aberto na janela ao lado é vício geek no qual nos recusamos a incorrer. Takashi Miike só está bem a escangalhar (carne humana, principalmente) e, como temos dificuldades em separar a realidade da ficção, mantivemos respeito. Mas, caramba, 1 metro e 64?! Apesar de quase duas grades de cerveja mais alto do que Danny DeVito, sentimo-nos subitamente apaziguados. Entre as sanguinolentas obras supracitadas, Miike (52 anos por estes dias), urdiu uma obra mais obscura que, por razões que imaginamos de saúde pública, não passou do circuito dos festivais de cinema (habituais antros de depravação, do deboche e dos moleskines). Trata-se de Visitor Q (2000), espécie de jackpot absoluto da mente doidivanas, coquetel danoso que junta as secreções mais virulentas da psique oriental (sim, que do lado de cá somos todos do Vaticano). Se Visitor Q fosse uma long-drink, era uma que misturasse, em doses iguais, uísque, vodca, aguardente de cana, Pisang Anbon, vinho para temperar filetes de pescada e diarreia de bebé. Percebemos a hesitação dos programadores dos multiplex: era uma chatice pagar a alguém para andar de esfregona na mão de hora e meia em hora meia. Já se sente melhor? Então sigamos para uma sinopse maneirinha. Um repórter de televisão na mó de baixo e a braços com um problema de ejaculação precoce decide esboçar um documentário sobre sexo e violência na juventude. Vai daí, trata de ter sexo com a filha – que, vai-se a ver, é prostituta – e filma o filho a «enfardar» na escola. A criança, revoltada, desconta na mãe, que – ironia das ironias – também deduz para a segurança social por via dos rendimentos obtidos em actividade de libertinagem – e, cerejinha podre sobre o bolo, entope as suas veias com heroína. Chiça, que isto não é coisa pouca. A toada é tão hiperbólica como aquela cena de A Casa na Pradaria em que, depois de um monólogo dramático de uma figura hirsuta, todas as personagens desatam numa sessão de gargalhada à desgarrada que perdurou, acreditamos, até ao almoço do dia seguinte (aqui vai ela, para sua comodidade). Só que em Visitor Q não há risota nem benevolência exagerada de Michael Landon: há um pai que dá ares de samurai de subúrbio e, munido de faca de serrilha, escarafuncha o escalpe de um dos petizes que desancam no filho («isto é um festival!», exclama, possuído) e uma mãe que, no intervalo de mais um chuto, arremessa uma chave de fendas contra a cabeça de outro colegial (não costumamos ser tão generosos, mas cá vai disto). O quotidiano ensandecido é presenciado por uma visita (Q, claro) que observa esta vidinha pacata de facas de talho a fazer rasantes a crianças, frases como «até um cadáver consegue ficar molhado», e leite materno saído directamente de um «seio heroinómano». Neste desafio à criatividade javarda (imaginamos Miike com os amigos ao despique: «epá, e se a velha der no cavalo?»; «e se o gajo tiver a pila murcha?», «e se…») deve residir, suspeitamos, uma reflexão sobre a cultura japonesa. E se Miike, caga-tacos comprovado, já não nos mete medo, nipónicos deste calibre preferimos ver ao longe (até puxámos o sofá para trás quando arrancou o DVD).

(publicado originalmente na edição de Agosto de 2012 da revista Loud!)