segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

The Innkeepers (2011)

«Ei, tenho aqui uma ideia… é um filme que se passa num hotel antigo e…». A conversa vai boa, o jogo de tabuleiro já foi arrumado, abre-se mais uma garrafa de cachaça (algum infeliz há-de picar o gelo porque a máquina pifou), faz-se zapping entre o VH1 Classic e uma compilação de northern soul. É Sábado à noite, o amanhã resolve-se amanhã, apetece-nos discutir a fase Capitol do Sinatra, mas há uma pobre alma que tem uma ideia sobre um filme passado num grande hotel antigo. Por esta altura, (aspirantes a) argumentistas e/ou realizadores são interrompidos por alguém (doravante designado como «eu») que pergunta: «o quê, tipo Shining?». Eis-nos perante um ponto crítico, uma bifurcação fatal: o momento em que o nosso interlocutor vai tentar vender-nos um filme premiado no festival independente do degole, ou em que assobiará para o lado, temendo a comparação com o filme de Kubrick e trocando-a por teorizações sobre os benefícios do açúcar mascavado. Ti West não é visita lá de casa, mas conhecemos-lhe as manhas desde o meio da década passada: é daqueles tipos que vai em frente, mesmo que lhe falemos no Shining (e ele até tem medo das gémeas do corredor: «Way to go, Kubrick, you ruined us all», terá dito), mesmo que lhe digamos que hotel só há um (o Overlook), mesmo que juremos a pés juntos que mais facilmente nos acagaça com um daqueles vídeos de gatinhos que acabam com o palhaço do It aos berros do que com um filme que se passa num hotel. Ti West sabe disso, e também sabe que estamos a ser picuinhas – nem todos os filmes rodados em aviões respondem a Aeroplano, nem todos os filmes portugueses são passados num bairro social dos subúrbios de Lisboa. Se fosse lá de casa (e, para benefício desta recensão, finjamos que é), falaria do grão, das «cigarette burns» da película, da genuinidade do 8 milímetros, da opulência do Cinemascope, da superioridade do que é retro sobre a vacuidade do que é digital; seria o cliché ambulante que tentou transportar – em bom, diga-se – para The House of the Devil, réplica do filme «babysitter mete-se em sarilhos» do início dos anos 80, ou o momento em que Ti West passou de desastroso aspirante a chico-esperto a chico-esperto com aspirações. Se lhe tivéssemos cortado o pio com um haiku que lemos na revista do Reader’s Digest, não nos teria falado de The Innkeepers, «um filme que se passa num hotel antigo» prestes a encerrar, e onde dois empregados (rapaz e rapariga) asseguram serviços mínimos antes de devolver as chaves ao patrão. Há habitués (mãe nervosa com filha pequena), uma visita inesperada (Kelly McGillis a fazer de actriz retirada, agora dedicada ao espiritismo) e um cavalheiro idoso sedento de regressar ao quarto onde, muitos anos antes, passou a lua de mel. Não demoramos, porém, a perceber que há outro hóspede que dá mais trabalho do que todos os outros – e só a camareira Claire (a vivaça Sara Paxton) parece ter mão (e coragem) para lhe tratar da saúde. Sejamos justos: West é económico, não nos quer dar tudo de chofre e espalha bem as peças pelo tabuleiro. O problema vem depois, quando é preciso pô-las a mexer – e aí tudo nos parece forçado e sem algo mais fecundo que justifique as peripécias que, no último terço do filme, nos são dadas a testemunhar. «Não há facada?», perguntamos-lhe no corredor, com copos vazios nas mãos a caminho da cozinha. E ele começa a falar-nos de açúcar mascavado, um assunto sobre o qual, felizmente, já temos opinião formada.

Eyes of Laura Mars (1978)

Ah... o bom e velho Os Olhos de Laura Mars. Lembro-me perfeitamente de quando o vi pela primeira vez. Estávamos num Inverno seco e soalheiro – que saudades de Janeiro de 2012... Convirá esclarecer, porém, que não o fiz antes porque a capa do DVD – que mostra a face de Faye Dunaway parcamente iluminada na penumbra, boca irrepreensível, olhos cocainados – sempre me deu a entender que o ser vinha do outro mundo. Cagaço alienígena é, por aqui, um turn off, salvo excepções que assinalaremos a seu tempo (e sim, respeitinho pelo oitavo passageiro): é um desalento cada vez que, no culminar de um crescendo de nervoso miudinho, nos dão a entender que os culpados dos maiores mistérios da nossa pacata existência terrena são seres feios, desarticulados mas poderosos, vindos dos arredores do planeta azulado. É como se no guichê dos porquês nos dissessem «lamentamos, mas isso não é connosco; tem que falar ali com aquele cavalheiro com os olhos no rabo e o rabo na cabeça que, de resto, está aqui para lhe limpar o sarampo». Não é coisa que nos apeteça fazer; é burocracia dolorosa. Mas não, Laura Mars (ou Faye Dunaway) não vem de Marte; é uma fotógrafa de moda bem-sucedida que começa a ver o que não quer. Aponte-se o calendário para os derradeiros anos da década de 70, com algum disco-sound à mistura e aquele glamour esborratado que continua a alimentar espectáculos de transformismo ad aeternum. Conte-se com uma apreciável dose de plasticidade high fashion, alguma neura nova-iorquina, penteados campanudos e corpos curvilíneos estilizados, tão à vontade no trashy como no chic (e não, não fomos convidados para a última Moda Lisboa). Nada que nos demova de desviar os olhos (os nossos, agora) de Faye Dunaway, diva tangível da década em questão, com quem já tínhamos trocado uns olhares (argh, os trocadilhos) marotos em Chinatown (1974) e Network (1976). A vida dela, por aqui, começa a complicar-se quando, através da retina da personagem Laura nos vamos apercebendo da ordem de trabalhos sangrenta de um assassino em série. São aviados pela medida grossa manequins (mais ou menos vestidas), amigos e conhecidos, um assistente pessoal espampanante, gente inocente em geral, para desespero de Laura e à revelia dos melhores intentos do detective (tinha de haver um, não?) que um jovem Tommy Lee Jones encarna com vigor. A história (John Carpenter a escrever para Irvin Kerschner realizar) dá as suas voltas e as aparências nunca são de fiar, mas as peças vão encaixando airosamente. E nunca achamos que a culpa vai ser daquela criatura truculenta que estacionou a nave espacial em segunda fila.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Shutter (2004)

Se me pusesse agora a praguejar contra os clichés do cinema de terror asiático faria figura de patego por duas razões: primeiro, dificilmente conseguiria sustentar o meu apreço por um género tão codificado como o filme slasher, assente numa quantidade apreciável de reincidências; segundo, estaria a meter no mesmo saco (de sufocante serapilheira, evidentemente) colegiais pálidas que só se avistam em relances (e de forma mais nítida quando faltam 10 ou 15 minutos para o filme acabar), raparigas com negros cabelos escorridos à frente da face (já cá faltavam!), inspectores policiais abnegados, chamadas telefónicas e mensagens escritas do além, gatos malvados, acácias suspeitas (a sério), suicidas em série e sarilhos diversos desencadeados por manchas de humidade no tecto. Convenhamos: há aqui material para incriminar três Coreias (ou para comprar um desumidificador). Shutter, de 2004, é a forma airosa que arranjamos para chutar para canto um debate terror japonês vs terror sul-coreano que vá além da percepção de que só os japoneses atendem telefones dizendo «moshi moshi» – é um filme tailandês, o primeiro que vimos, naquela altura em que não havia maratona de cagaço que não acabasse com uma criança diabólica aparecida sabe-se lá de onde, a arfar com asma (e a desafiar-nos o controlo intestinal). Em Banguecoque, o casal de namorados Tun (fotógrafo e sósia do actor Rodrigo Santoro), e Jane (tailandesa maneirinha) metem-se à estrada depois de uma noite de copos e acabam por estraçalhar uma pobre alma que se insinua à frente do carro. O bom senso mandaria dar uma mãozinha à ensaguentada vítima, mas  o casal, amedrontado, dá à sola e finge que não se passa nada. Está o caldo entornado: nos dias seguintes, as fotos de Tun começam a exibir sombras, como se um convidado especial se tivesse intrometido na altura do «olhó passarinho»; às duas por três, percebe-se que a vítima é uma antiga namorada de Tun, a esquálida Natre. O resto do filme  poderia estar resumido na letra do êxito mais popular de Ágata. Mas também, a atentar no desenlace, na cantilena que Mónica Sintra mais trauteou na vida. É assim o terror asiático: tradição popular e alegorias.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

See No Evil (1971)

Atirem-me um cutelo ferrugento se estiver enganado, mas creio que o cinema, em geral, nunca mostrou grande apreço por personagens invisuais. Existem, mas cumprem uma função adjuvante – dão pistas ou instruções (mas nunca do género «vestia um anorak castanho claro, suba ali a colina que ainda o apanha»), surgem para causar desconforto a terceiros (que, obviamente, ou exageram no ignorar da deficiência, ou fazem tudo para sublinhá-la), ou então socorrem-se daquele aparato habitualmente desprezível que denominarei de detonador de lágrima. Até no cinema de terror, titular de um código próprio, as coisas não são radicalmente diferentes: a personagem cega não é a primeira a dizer «vão sem mim que eu não vou lá ter» (contexto atribuído, habitualmente, a tipos que têm o azar de ver o peroneu trespassado por estacas), mas é como se nos quisesse dizer isso. Protagonistas de óculos escuros e bengala – olha a graçola – nem vê-los. A opção é compreensível num género em que visões demoníacas são o prato do dia e não dá jeito nenhum ter um protagonista que não vê nada. Há excepções, tanto no cinema «em geral», como no do cagaço: Audrey Hepburn avia uma série de malfeitores nesse exemplar thriller de desencontros chamado Wait Until Dark, de Terence Young (1967); Karl Malden também não se sai mal no misterioso Il Gatto a Nove Code, de Dario Argento (1971); e Mia Farrow também livra o coiro – sabe Deus como – em See No Evil, de Richard Fleischer (1971), que em alguns territórios, para facilitar, se chamou Blind Terror. A pequenita Farrow, 1 metro e 63 centímetros de gente, aqui com 26 anos mas a parecer 18 (uma evolução face à aparência de 12 em Rosemary’s Baby), faz de Sarah, rapariga que perde a visão na sequência de um acidente de cavalo e que passa a viver com os tios e uma prima numa casa de campo. Acontecem, claro, coisinhas más e não demoramos muito tempo a perceber que entre os entes queridos não há um que não tenha quinado às mãos de um vilão sanguinário. Ela lá anda, pé ante pé, para não acordar ninguém – com sucesso, porque não acorda, de facto, ninguém. Nós vemos tudo, ela não. E se já costumamos dar instruções «para dentro do relvado» quando eles estão artilhados, então aqui entramos pelo campo adentro e quase agredimos o árbitro. «Não batam mais na ceguinha» seria aqui a piada fácil. Mas nem vamos usá-la porque Sarah safa-se bem, como no cinema.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Slaughter High (1984)

Já não vou para novo. Ainda me lembro do Caniço a esvair-se em sangue na novela portuguesa Chuva Na Areia (mas só muito mais tarde percebi que o rapaz não perdera apenas glóbulos de duas cores) e sei de cor quem matou Odete Roitman na novela brasileira Vale Tudo. Filme com bolinha significava ir para a cama mais cedo, mas catanada ou tiro à queima-roupa nas novelas ia bem com iscas de fígado ao jantar. Durante muito tempo, metia-me mais medo uma foto a preto e branco na parede do escritório de casa de uma tia («Era a irmã do avô, morreu com 2 anos, não falemos mais disso») do que qualquer cagaço no pequeno ecrã. A protecção materna começou a fraquejar no início dos anos 90 e foi por aí que filmes obscuros como Terror no Supermercado (que venho a descobrir agora chamar-se Intruder, de 1989), com Sam Raimi e Bruce Campbell (sim, a parelha realizador/protagonista de The Evil Dead), ou A Máscara Assassina (Slaughter High, de 1984) passaram a ser a minha resposta na escola à pergunta «Quais são os teus filmes de terror preferidos?». Dizer Gremlins ou Aracnofobia talvez ajudasse a uma maior integração, mas se na música e no futebol era um cepo de primeira, no cinema de arrepiar tinha os meus galões (perdidos na faculdade para os filmes de autor, mas erros todos cometemos). No primeiro agradava-me que a acção estivesse praticamente confinada ao interior de um supermercado (para o caso de alguém precisar de uma cotonete); no segundo agradava-me tudo, e é deste que vos falo agora. Slaughter High tem tudo o que um bom slasher deve ter: charros a rodar de mão em mão, seios femininos, uma partida que acaba mal, efeitos sonoros ridículos e o genérico final ao som de heavy metal. Conta-se a história de Marty, o saco de pancada da escola, vítima do que hoje denominaríamos de «bullying» e alvo (bem-sucedido) de uma valente explosão no laboratório de química. Poucos anos depois, a malta responsável pela tropelia volta à escola (agora convenientemente abandonada) para um encontro informal de antigos alunos (à noite, claro) e começa a ser incomodada por um cavalheiro mascarado de joker do baralho de cartas, nada menos que o nosso nerd desfigurado. Como em quase todos os slashers, os estudantes de secundário têm todos idade para ter filhos (adolescentes) – e nesse particular há a assinalar a presença da espantosa Caroline Munro, diva do horror barato dos anos 70, à época com 35 anos –, e a hipótese de procurar melhor sorte fora dali nunca é colocada, para gáudio do espectador. Pormenor perturbante: o actor que desempenha o papel de Marty desistiu de viver pouco depois. Acagaçou-se.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Red State (2011)

Red State, de Kevin Smith (tipo dado, sobretudo, a comédias) é um daqueles filmes que gera falatório instantâneo quanto mais não seja porque dá azo a raciocínios do género «se este filme cai nas mãos erradas vai dar espiga». Mas também nos ocorre que ir por aí é a mesma coisa que assumir que um anão pode, realmente, ficar com ideias marotas depois de ver Chucky (não, pois não?) e essa é uma discussão que não nos apetece ter agora. A acção decorre na América amarela (a cor que associo quando há roupa antiquada – a rapariga do poster não conta – e homens de chapéu a dizer «ma'am») e, em boa parte, dentro de um local de culto baptista (isto antes de começar a chinfrineira). A voz de comando é a de Abin Cooper, um pastor com retórica tal que enfeitiça uma comunidade (fechada, temerosa e inflexível na sua defesa doentia da família, dos bons costumes, da roupa antiquada e dos homens que dizem «ma'am») e transforma os seus fiéis num braço armado (efectivo) da doutrina que professa. As vítimas são três rapazes que caíram numa esparrela depois de responder a um anúncio de sexo fácil na internet (uma arapuca montada por uma das fiéis seniores) e a certa altura espera-se que o filme seja sobre a tentativa de fuga dos infelizes das amarras daquela gente maluca, mas a história não vai por aí e a polícia (toneladas dela, incluindo o pachorrento John Goodman) acorre ao local para equilibrar a contenda. Pensará o leitor que estamos a contar a história toda, mas juramos que o tiroteio que se seguiu nos pareceu demorar algumas três horas quando o filme, coitado, só tem 88 minutos. É uma saraivada de arsenal bélico com paralelo na carga de cachaporra que Liam Neeson dá em Taken (mas para salvar a filha, caramba!). Tal é o crepitar de G3, Kalashnikovs e outras bisarmas que, às duas por três, nos perguntamos se o nosso gato não estará a fazer pipocas na cozinha (mas com abóboras). No fim, aquele tépido odor a inconsequência (ou a óleo) e a sensação de que a América amarela merecia melhor.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Monkey Shines (1988)

No cinema americano dos anos 80, tal como no concurso 1, 2, 3, tudo era possível. Só que em vez de Renaults Super 5, PCs Wang e férias na Balaia, tínhamos computadores que compunham música para engatar miúdas, sereias muito parecidas com a Daryl Hannah, programas em linguagem Cobol capazes de criar clones da Kelly Le Brock, ou telefones ligados a computadores (coisa estranha!) capazes de, à custa de um engano, aquecer a Guerra Fria... A idade da oportunidade teve, porém, o seu revés: os nubentes a quem o Carlos Cruz agraciou com uma cozinha equipada estarão hoje a pagar cinco empréstimos (fora as custas do divórcio), a evolução tecnológica terminou – como se sabe – no Facebook, e o próprio Carlos Cruz, bem... No género mais propenso ao cagaço, a história não foi diferente – os Gremlins torraram tudo em Las Vegas e tomem lá miúdas sul-coreanas de cabelos negros escorridos à frente da face. Mas a memória – como a escoliose ou a sífilis – já ninguém nos tira e às vezes batem umas saudades valentes da inimputável ética de trabalho de um Chucky (já toparam a fixação, não?), a abnegação de um Maniac Cop, ou o plano sem margem de erro dos Killer Clowns From Outer Space (em bom português, S.O.S. Palhaços Assassinos). O sonho americano, a ilusão de que tudo era possível se a música fosse alegre, está presente numa das mais atípicas obras de George A. Romero (o papá dos mortos-vivos), uma película de 1988 intitulada Monkey Shines. É a história de Alan, um atleta subitamente paralizado a quem a vida volta a fazer sentido a partir do momento em que lhe é disponibilizado o serviço personalizado de uma ama. Romance no ar? Aguentem os cavalos: Ella, a ama prestável, é uma macaca. Pausa dramática. Mas é uma macaca obediente, treinada para a lida da casa. Suspiro de alívio. Ela acende luzes, põe discos a tocar, atende telefonemas – tudo com a empatia que Vicky, a Pequena Maravilha (outra mítica personagem não humana dos anos 80), nunca conseguiu mostrar. Só que Ella, macaquita capaz de desencadear na plateia uma sucessão de «ohhhs» e «aaahhs» de ternura, começa a sentir-se cada vez mais em casa (não se pode dar confiança à criadagem), mostra-se incomodada pelas visitas habituais de uma amiga mais íntima do seu «paciente», e a relação de poder que parecia imutável sofre, digamos, um pequeno abanão. Quando paramos para pensar por que razão estamos, em 2012, a ver um filme em que uma criatura simiesca ajuda um cidadão tetraplégico a dar cabo do que resta da sua vida, já os créditos finais nos alertam para o facto de o papel de Ella, a macaca, ser desempenhado por Boo, o macaco. Voltar a culpar os anos 80 é capaz de já não resultar...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Dans Ton Sommeil (2010)

Quando os franceses se metem no terror gratuito (facada na cara!), somos tentados a pensar que há uma razão palpável («são franceses, há uma moral qualquer, isto vai ser estudado nas faculdades»). Se o cinema de terror disser alguma coisa sobre a cabeça de quem o faz, há pelo menos uma razão: os franceses reflectem sobre si com o mesmo vigor com que os americanos projectam as suas neuras na Europa de Leste (veja-se Hostel e derivados). Isto é, enquanto o americano diz «não fui eu, foi aquele mafioso de bigode e pronúncia estranha», o francês não tem pejo em assumir que «o assassino está entre nós, come baguette, raclette, usa boina e bebe vinho». Dans Ton Sommeil (dos irmãos Caroline e Éric du Potet) inscreve-se na mui apreciável tradição francesa de Haute Tension, Ils, Martyrs ou À L’Interieur: há um intruso em casa que nos vai dar algum trabalho, mas o mais provável é que o/a tipo/a nos limpe o sarampo antes de podermos contar como foi. Logo de início somos confrontados com uma certa tragédia na vida de Sarah (Anne Parillaud), rapariga para os seus 40 e muitos, casada e com um filho. O resto da acção passa-se um ano depois, com a protagonista ainda mal refeita do desaire. À medida que a coisa avança e percebemos quem é o mau da fita, passamos o tempo a dizer «não faças isso, não vás por aí, não abras a porta, não saias do carro» mas Sarah prefere dar ouvidos a outros e, por infeliz pontaria, faz sempre tudo ao contrário. Depois de finalizada a contenda, resignados, fomos ao Internet Movie Database e atentámos nas únicas duas palavras-chave do enredo: «nudez frontal masculina» e «título de três palavras». Confere e confere.

Tucker and Dale vs Evil (2010)

Há uma altura, neste demorado flirt com o cagaço, em que subimos para cima do pedestal (construído a partir de ossadas humanas, claro) e mandamos abaixo o slasher movie. Que é básico, previsível, formulaico, que o black é o primeiro a ir e no fim sobra a virgem (ou, no caso de não haver uma, aquela que não andou à stickada no primeiro terço do filme). Essa fase de recusa é o quarto de hora mais imprestável que já experimentámos viver. Ver um slasher movie é um acto de purificação – é como decidir ouvir a «Anarchy in the UK», dos Sex Pistols, depois de tropeçarmos num videoclip dos Emerson Lake & Palmer no VH1 Classic. O slasher é um género geralmente linear porque se baseia no mais monótono e repetitivo (mas não menos escabroso) tipo de crime: o perpetrado pelo serial killer. Com um twist óbvio: a vida real mostra-nos homens (convenhamos, são mais eles) viciados em matar da mesma maneira (não consta que Jack, o Estripador, tenha decidido recorrer ao envenenamento para desanuviar); o slasher dá-nos a conhecer personagens versadas em múltiplas áreas do saber (matar), do golpe fatal de catanada à telecinesia. O truque é este: a constante – e tem de haver uma constante – deixa de ser o modo de agir para passar a ser o modo de cada um destes cavalheiros se apresentar. Alguma vez vimos Jason Voorhees de smoking? Michael Myers de sevilhana? Chucky com crista à Ronaldo? Até na ética o slasher é diferente: nenhum destes vilões costuma recorrer à arma de fogo porque compreende que esse é o recurso mais facilmente ao alcance (é a América, pá) das potenciais vítimas. Ao longo dos últimos anos, e no pós-Scream (mas indo ligeiramente mais atrás, e sem sair de Wes Craven, depois do auto-reflexivo Elm Steet: New Nightmare, de 1994) desmontar o slasher tem sido apanágio do cinema de terror indie (veja-se Behind The Mask: The Rise of Leslie Vernon, de 2006), mas também tarefa de geeks e de tipos com tempo para fazer blogues. Por aqui prefere-se o documentário e, para o efeito, Going to Pieces: The Rise and Fall of the Slasher Film (2006) é manual mais do que suficiente para estudar o código. Tudo isto para chegar a Tucker and Dale vs Evil, filme de 2010 de Eli Craig, bem conseguida inversão de um dos clichés mais salutares do género: a secular hospitalidade dos pacóvios redneck (ou hillbillies, como preferirem) quando juventude da cidade decide passar umas férias no campo. Aqui, os hillbillies tornam-se as vítimas, e ao dizermos isto de rajada não estamos a estragar a surpresa – a coisa torna-se óbvia logo na indispensável cena da loja da bomba de gasolina. Tucker and Dale vs Evil é, assim, um Wrong Turn ao contrário, em que campistas universitários infernizam a vida a dois gebos temerosos que, contudo, aos olhos da malta agressora parecem carniceiros da pior estirpe. A exploração do engano é levada, provavelmente, ao limite, mas há uma certa originalidade neste filme onde cenas românticas não terminam com morte por empalamento, e nem o respeito demonstrado pela cartilha do género (assaz libertina) faz com que consigamos ver mais do que o sutiã da protagonista feminina, Katrina Bowden, a sempre prazenteira à vista Cerie da série 30 Rock – e isto, por amor à reinvenção do género (mas só por isso), é muito bem vindo.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Night of the Comet (1984)

Ah, os anos 80 (do século XX – podíamos estar mais 68 anos sem precisar de fazer este parêntesis, mas pronto), a década sobre a qual nos habituámos a dizer mal, mas que agora é vintage (para benefício do Roberto Leal e do Cais do Sodré). Na idade do crescimento (há coisa de meses), comprámos livros com títulos como «Best Cult Horror of the 80s» e descobrimos aqueles filmes menos óbvios que fazem questão de aparecer sempre: Phantasm, de Don Coscarelli, é um deles (ainda não vi, já que perguntam); Night of the Comet, ano da graça de 1984, é outro (e este já vi, como perceberão a seguir). Duas irmãs, valley girls de duvidoso (perdão, vintage) gosto capilar sobrevivem aos efeitos devastadores de um cometa que toda a gente espera ver com fervor. Los Angeles parece o 28 Days Later..., mas mais soalheira, com muito espaço livre e o costumeiro zombie à espera do sinal da cruz (aka tiro na tola) e da extrema unção. Mas o que surpreende é a frivolidade das manas, muito ciosas da sua beleza e preocupadas com a perspectiva de viverem o resto das suas vidas sem o calorzinho macho de um casaco da UCLA – vá lá que um latagão de apelido latino equilibra as coisas e ajuda a resolver problemas de transporte. Temos cenários improváveis como os estúdios de uma rádio local (que difunde uma animada emissão pré-gravada), um centro comercial (ah, os anos 80...) a pedir furto sem culpa, um grupo de meliantes apostado em estragar a beleza das meninas (e, nesse aspecto, Catherine Mary Stewart mostra agradáveis predicados). Os diálogos são agradavelmente superficiais (sempre numa toada «o mundo vai acabar, mas eu tenho uma malha na meia») e os zombies são menos uma ameaça real e mais uma cambada de chatos («deixe-me passar, sr. Zombe, que a outra rua está cortada»). Não é o fim do mundo em cuecas; é o fim do mundo em rímel e saltos altos. Vintage.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Inhale (2010)

Filmes sobre transplantes de órgãos são um investimento seguro – pelo menos para mim que não me comovo com escarafunchos e perfurações em corpo alheio desde que vi a minha tia Edite a despir o casaco de peles a um coelho que eu próprio baptizei. Inhale é um filme que parte de um propósito válido: filha pré-púbere de um casal mal consegue respirar e precisa de um pulmão novo. Aqui convirá esclarecer que o pai é um advogado poderoso que trabalha para um candidato a governador ainda mais poderoso, e a mãe é a sempre mimosa Diane Kruger, senhora de uma promissora cena de nudez aqui interrompida por emergência pulmonar da filha (chatice o filme não ser sobre, sei lá, caruncho no tecto). Resmungos à parte, há aqui alguma capacidade para «resolver as coisas». E é precisamente para resolvê-las que o protagonista (o pai) viaja para o México, paga favores com notas de conto a cado passo que dá, anda cá e lá entre hospital, polícia e barraco de traficante, faz amizades de circunstância e, claro, é colocado perante o dilema dos dilemas. Sim, há sangue (falámos em polícia, certo?); sim, há tiroteio de meia-noite, civis abatidos a baixo custo; não, não torna a haver nudez de Diane Kruger. Mas há um propósito empático e imaginamos a locução do trailer mais ou menos assim: «um pai, uma mãe, uma escolha, uma carrada de mexicanos – até miúdos de rua – que sabe falar inglês». Só não há um pulmão virulento a atacar as amígdalas com uma espada de samurai. Mas a vida, tal como a lasanha da cantina, nunca é como a gente quer.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Attack The Block (2011)

Mitras do sul de Londres são alvo de um ataque alienígena. Há traficantes, delinquentes, líderes, seguidores, uma rapariga apanhada ali meio por acaso (a simpática Jodie Whittaker, que tinha visto recentemente na série da ITV, Marchlands), mostrengos mal amanhados e malta sempre a fugir de um lado para o outro a ver se escapa do inevitável: o confronto decisivo com as imperscrutáveis forças do outro mundo. Há quem veja em Attack The Block uma metáfora social (cá para mim, um mitra guerreiro não é pior do que um beto guerreiro, apesar de os segundos serem sempre os primeiros a morrer nestas coisas), há quem não se demore a mandar abaixo os efeitos especiais (aqui será sempre um caso de «preso por ter...»), há quem se divirta com o ritmo «toca e foge» da coisa. A mim enfastiou-me: a certa altura parecia que corriam de apartamento em apartamento à procura de açúcar para o leite creme. «Ah, não tem? Não faz mal, vou já ali arrombar a porta do Teixeira do 4º esquerdo». Subúrbio por subúrbio, venha de lá o Ken Loach que até assusta mais.

Paranormal Activity 3 (2011)


Paranormal Activity 3 é filme de Domingo à tarde. Não, o Adam Sandler não entra. Eu explico: Paranornal Activity, no seu jeito tosco de VHS antiga (a parte 3 deste franchise do cagaço é uma prequela, passada nos anos 80 do século passado) é o típico filme que prefiro, para bem da minha saúde cardíaca, ver a um Domingo à tarde, com o sol a entrar pela frincha da cortina como que a dizer que está tudo bem e não vale a pena espernear muito no sofá porque nada disto é a sério (por oposição, e obviamente, à noite seria demasiado a sério). Paranormal Activity é uma espécie de Blair Witch Project dentro de casa: a maior parte das vezes está tudo bem, mas quando não está, a coisa consegue ser realmente sinistra (e isto é porque o acagaçado que vos escreve consegue picar o miolo com uma cama a ser empurrada por uma força invisível, lâmpadas a estilhaçar e crianças que falam com amigos sensíveis que só aparecem quando e a quem lhes convém). O volume 3 vai lá atrás, à raiz de todas as assombrações e, como é sabido, quando a coisa mete crianças, o factor medo dispara gratuitamente. Como não era hábito, há vinte e cinco anos, andar-se de câmara em punho a filmar tudo o que mexe, o pai (adoptivo) da pequenada – que faz vídeos para casamentos, vejam lá que sorte – instala um sistema de câmaras fixas em casa quando lhe começa a cheirar a esturro (e o fantasminha brincalhão desata às diabruras durante a noite). O resto é o habitual jogo do «A: Epá, olha-me isto! | B: Isto o quê? Tá mas é calado, pá. Só tu para acreditares nessa treta» e depois dá no que deu. Eu bem tentei avisar.