quinta-feira, 31 de maio de 2012

Livide (2011)

Por inerência profissional, uma parte do que faço é ouvir discos do início até ao fim, repetidamente. Mesmo os que são maus logo ao primeiro desbastar do celofane envolvente. Ou os que denunciam a derrocada com o lettering manhoso do verso. Ou os da banda Pólo Norte. Atiram-me à cara que deve ser fantástico ter borlas para concertos; riposto que ninguém precisa de pagar para aceder a um local de trabalho. Concedo: é melhor do que andar a picar pedra. E, na verdade, é melhor do que muitas outras coisas, mas deixem-me cá manter o ar blasé. Portanto, entre outras coisas, ouço discos do início até ao fim. Fazer generalizações é sempre um pau de dois bicos (e os dois picam que se fartam), mas como qualquer pessoa que repete um processo, acabo por encontrar padrões na forma como a «coisa» acontece. Há, por isso, discos que começam em grande, alarves, comilões, com uma abastança tal que ainda não se chegou a meio e já temos que tomar os sais de frutos; outros há que não descolam, «morrendo» progressivamente até ao primeiro (demorado) ponto de interesse (normalmente o silêncio absoluto do final). O inventário de variações é, com o passar dos anos, cada vez maior: existem discos «biorritmo», aos altos e baixos; os discos «arquipélago», onde as boas canções se distribuem sem grande critério, rodeadas de charcos de desinteresse (e, no limite, os discos «ilha deserta», naturalmente menos cativantes); os discos «chouriço», que dão a volta e regressam, no final, ao ponto de partida (veja-se Sgt. Pepper’s, dos Beatles), unidos por um cordel ou agrafados com arame. Falamos de estruturas internas (e, como repararam, com um rigor científico a toda a prova), matéria suficientemente aborrecida para aceitarmos que, por esta altura, já se esteja desse lado a consultar o calendário do Euro 2012. Se exagerarmos na sua importância, Livide (Alexandre Bustillo, Julien Maury, 2011) faz lembrar o disco de estreia dos GNR, Independança: depois de um lado A que, praticamente, funda a pop em português, encontramos uma segunda face com uma única faixa de experiências de estúdio. As semelhanças ficam-se, ressalvamos, pela estrutura: Independança é um disco pop, não conta uma história (e podemos optar por não ouvir metade do disco), enquanto Livide tenta entrançar-nos numa (e não particularmente brilhante). Dos mesmos autores de À L’Interieur (um festim de hemoglobina e líquido amniótico), promete mundos e fundos, logo a começar com o plano inicial (zona costeira abandonada, uma cabeça decepada, largada na areia), mas quando é preciso fazer o que tem que ser feito (resolver a trama, encontrar as causas dos efeitos) espalha-se ao comprido com assombrações de vão de escada. Somos apresentados à jovem Lucy, que cumpre o seu primeiro dia de trabalho como auxiliar de assistente social. Vemo-la a visitar velhinhos incapacitados e a mostrar uma desenvoltura inesperada para quem, de chofre, tem de lidar com cuidados paliativos. Até que chega a vez de visitar a senhora Jessel, idosa em coma cerebral há vários anos, única moradora de uma enorme mansão a precisar de manutenção (é um filme de cagaço, lembremo-nos), algo afastada do povoado. Em jovem, Jessel era professora de dança e, reza a lenda, terá escondido um tesouro algures na casa. De regresso à aldeia, Lucy conta tudo ao namorado e este, sedento de deixar o negócio pesqueiro para trás, pega no irmão e, mesmo perante a relutância de Lucy, os três «embarcam» na caça ao tesouro. O resto da acção passa-se, claro, na casa misteriosa, ou seja, no mesmo espaço onde, menos imobilizada do que inicialmente se suporia, a senhora Jessel tenta proteger o que é seu (e, evidentemente, ocultar um passado sinistro). É a partir daí que o filme se perde, com um «sobrenatural» à Disney (e com muito menos javardice do que o filme anterior dos mesmos autores) a tentar mascarar uma flagrante incapacidade para contar uma história diferente de outras, já gastas, narrativas. Ocorre-me dizer que este filme não me é estranho – e se estão a pensar no programa de televisão com um nome parecido, então é porque me leram (bem) até ao fim.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

La Cara Oculta (2011)

Não vamos elencar os méritos artísticos das películas espanholas de terror – eles sabem que são bons –, mas apraz-nos sublinhar algo que não é despiciendo neste mundo atroz da carnificina no grande ecrã (ou no desconforto de um sofá escangalhado). E o que sublinhamos é a evidência de que as raparigas não são nada de err… deitar fora (prerrogativa que qualquer slasher dos anos 80 nunca enjeitou, mas que já vimos muito boa gente, depois, negligenciar). Concretize-se: La Cara Oculta (Andrés Baiz, 2011) tem predicados que ultrapassam o odor primaveril que pressentimos no corpinho airoso de Martina García, mas uma insistência inicial na nudez feminina antes de o filme ganhar, digamos, corpo (que não aquele de que estamos a falar), assume-se como estratégia infalível. Porque temos responsabilidades maritais, há que voltar à «vaca fria»: não é por maminhas ao léu que estamos nisto; La Cara Oculta não é sexploitation e, se quiserem uma analogia «distopicamente» rebarbada, as musas de Russ Meyer são widescreen para o exíguo Blackberry da nossa co-protagonista. Adrián é um maestro que se muda de Barcelona para Bogotá, na Colômbia. Consigo, vai a namorada Belén. Juntos, escolhem uma espaçosa casa de campo que uma senhora alemã, viúva, decide arrendar. Com a casa vem o cão. E com uma nova vida e nova orquestra (e nova violinista) para gerir, Adrián mostra-se algo titubeante na tarefa de se manter fiel. Belén, que trocou a cidade de Gaudí por uma algo inexistente Bogotá (Baiz quase não a filma, dando a entender que o financiamento colombiano não terá sido desmesurado), não é rapariga de se deixar ficar e, certo dia, Adrián chega a casa e não a encontra. No quarto, um bilhete que remete para a câmara fotográfica, onde Belén deixara gravada uma mensagem de despedida. Aflito, Adrián contacta a polícia, emborracha-se numa mesa de bar (como naquela canção triste brasileira que dá pelo nome de «Garçom»), e é «salvo» por uma «garçonete» local, Fabiana, que no dia seguinte já experimenta as molas da cama que era de Belén. A questão fulcral de La Cara Oculta é, claro, onde raio se terá metido Belén. Terá regressado a Barcelona? Foi raptada? Estará morta? E que casa é aquela, exílio de um oficial nazi (o falecido marido da proprietária alemã)? E porque é que a canalização já teve dias melhores? Tendo percorrido, interessados, a hora e meia do filme, já conhecemos as respostas e estamos aqui numa angústia para evitar o spoiler (neste blogue doravante designado como «estragação»): La Cara Oculta é um belo puzzle, uma história contada através de perspectivas distintas, concorrentes, que parecem querer tocar-se a determinado momento. E parte, afinal de contas, de um daqueles motes misteriosos que qualquer um de nós saberia esboçar numa noite de uísque em que, com embriagado (e embargado) entusiasmo, deixamos escapar um «ainda hei-de fazer um filme». Ainda bem que há quem os faça por nós, dizemos nós agora, a bebericar uma água das Pedras.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Mientras Duermes (2011)


Uma nota prévia: fôssemos nós realizadores de cinema e não hesitaríamos em recrutar Luis Tosar para abominar a vida da nossa delicada personagem-vítima (e afugentar os energúmenos que sobem as escadas do prédio à bruta de madrugada). Por isso, há que parabenizar o catalão Jaume Balagueró pela lembrança; Mientras Duermes é um «one man show» de Tosar que merece aplauso (e dentes cerrados para não borrar a cueca). Tosar, que aqui faz de César, porteiro de prédio, fere-nos de morte só com as sobrancelhas – e convenhamos que o poder de uma (quase) «monocelha» não deve ser menosprezado. Lembramo-nos dele, Tosar, como o marido violento de Te Doy Mis Ojos (de Icíar Bollaín) e ocorre-nos que César é essa mesma personagem, anos mais tarde, depois de tudo ter corrido (ainda) pior. Jaume Balagueró, o homem de Frágiles (com a Ally McBeal, caramba), Los Sin Nombre e Darkness volta a provar que é quando mais poupa em exteriores que as coisas lhe saem realmente bem – assim foi também em [REC], filme-catástrofe passado dentro de um bloco de apartamentos. Este apego ao terror caseiro começa-lhe, de resto, em Para Entrar a Vivir, uma das seis «películas para no dormir» que a nata do cagaço castelhano levou à televisão há uns anos. E no terror espanhol, esta vontade de ficar em casa também já foi amiga de Guillem Morales no excitante El Habitante Incierto com o qual este Mientras Duermes tem vários pontos de contacto. Tosar (ou César), já vimos, é um sinistro porteiro de prédio a fingir que é um tipo normal. Ora relativamente apreciado pelos habitantes (mas um pouco menos pelo senhorio), ora cordialmente ignorado, é um vigilante com funções alargadas (dá de comer aos cães da velhota, trata das canalizações) e um amor-próprio abaixo de zero que vai ruminando até transformar em revolta. Vive sozinho sem grandes pertences; a sua única confidente é a mãe, que está internada e não consegue falar. Primeiro pensamos que se trata de um tipo avariado, mas com hipótese de ter um fundo bom; depois percebemos que César é um psicopata que deseja, a toda a força, tomar posse de uma das habitantes do prédio, a jovem Clara: simpática, bonita, airosa, disponível, um pouco vulnerável. Para tal, engendra um esquema que lhe permite – não vamos dizer como – ter acesso ao reduto mais íntimo da rapariga (a cama) sem que ninguém (nem ela) saiba. Enche-lhe a casa de bichos (para, depois, colher os louros da desinfestação), infecta-lhe os cremes e as loções para que a moça desespere como comichões (e assim ter um motivo para se meter com ela), enfurece-se quando se apercebe que há um outro homem a disputá-la (com sucesso). A partir daí, como se costuma dizer por aqui, acontecem coisas. Balagueró consegue o improvável nestas aventuras do terror pica-miolos: não nos distrai com o que é acessório; vai completamente directo ao assunto, mostra-nos a abantesma no seu real esplendor. Os nossos olhos não se distanciam das sobrancelhas medonhas de César, das suas manobras truculentas, dos seus gestos obsessivos – é o tal «one man show» de que falávamos. O mesmo «show» que Tilda Swinton, do lado contrário da barricada, dá num certo filme temporalmente vizinho (mas que nós, pategos que somos, não achámos tão bom quanto se diz por aí). Precisávamos de ter falado sobre César, está mais do que visto.