quarta-feira, 17 de julho de 2013

The Slumber Party Massacre (1982)

Já não sei se o escrevi nesta página ou se o terei vociferado, com entusiasmo de bebedice, numa qualquer taberna deste sinistro Portugal, mas tenho aqui uma costela (ou um entrecosto inteiro) de carniceiro no que à filmografia do cagaço diz respeito. Atente-se que qualquer desafio psicológico me causa mais arrepios do que uma peça do lombo trespassada por perícia de talhante, mas talvez precisamente por isso – por não exigir mais do que um neurónio em modo de poupança –, o filme slasher é recurso costumeiro lá por casa. Derreados após um dia de labor, uns apegam-se às novelas; por aqui desanuvia-se a ver um vilão normalmente incógnito a aplicar certeiros golpes de catana (e restante arsenal da caixa de ferramentas). Com folha de serviços apetrechada até meio dos anos 1980 (a partir do qual começa a perder poder de choque), o filme slasher deu emprego a beldades de olhinho azul, mas também a zarolhos; a rapagões atléticos e outros atarracados; a raparigas espampanantes e escroques absolutos; a actores de primeira apanha e a transeuntes chamados a cena à última hora – pese a rigidez formulaica, não há cinema mais despreconceituoso, ousamos dizer. Chegados a The Slumber Party Massacre, de 1982, não demoramos a ver raparigas de «high school» (ou seja, actrizes de vinte e muitos) a banharem-se, languidamente, no balneário do pavilhão gimnodesportivo e, às duas por três, já há rapaziada a gabar a qualidade da erva. Ah, a grata sensação de estarmos em casa. Não vem muito ao caso, mas também há um enredo: Trish, adolescente, decide dar uma festa do pijama enquanto os paizinhos vão dar uma volta. Nesse mesmo dia, um assassino em série escapa da cadeia e, munido de um berbequim, começa a fazer miséria na escola secundária local, começando por eliminar do elenco uma «mulher das obras» (inversão da matriz machista do slasher? – já lá vamos), ficando-lhe com a carrinha e usando-a como «base de operações». Para a festarola são convidadas Kim, Jackie, Diane e Valerie, colegas de Trish na equipa de basquetebol. Mas Valerie (a trágica Robin Stille, que se encharcaria em álcool ao longo da idade adulta e desistiria de viver em 1996, na casa dos trinta) ouve o que não quer e decide ficar em casa a tomar conta da irmã mais nova. O vilão vai fazendo o que é da praxe nestes filmes, nomeadamente limpando o sarampo a opositores masculinos e estreitando o seu raio de acção. E a partir de certa altura – entenda-se: na escuridão da noite – tudo se passa entre a casa onde Trish recebe as amigas do peito (ahem…) e, do outro lado da rua, a vivenda de Valerie e da irmã, uma inconveniente e curiosa adolescente que faz da sua leitura de eleição a revista Playgirl. O que se passa a seguir não é inédito e o leitor não se sentirá defraudado (mas ainda está a tempo de voltar para trás) se dissermos que o contador de baixas vai apresentando números progressivamente mais altos. Lentamente, o nosso segundo neurónio começa a apitar: há por aqui um subtexto feminista que é novidade neste cinema «testosterónico». Há uma realizadora (Amy Holden Jones) e uma argumentista (Rita Mae Brown). Para o fim (perdoem-me a inconfidência) não fica um casal. Os rapazes não levam a sua avante no que diz respeito à consumação das suas, digamos, intenções. Há uma «mulher das obras» e uma treinadora de basquetebol (e não um lambareiro «coach» a olhar para os calções das moças). E, tirando a esguia e charmosa Val (que, como vimos, ficou de fora da festa), as raparigas não são propriamente umas brasas. Um terceiro neurónio (outra novidade!) incute-nos simpatia assinalável por um filme capaz de, na sua alarve matança, inverter boa parte dos estereótipos do estilo sem que sintamos que estamos perante um objecto vindo de outro mundo. Gostamos de ver rabos e mamas, sim senhor, mas também defendemos o «girl power». As contradições ficam para outra altura.

(publicado originalmente na edição de Junho de 2012 da revista Loud!)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Tésis (1996)

Sejamos auto-referenciais, como qualquer película de terror que se preze: o Cagaço deste mês começa com a vossa vítima preferida a sair de um multíplex da capital, fim de tarde de domingo soalheira, com aquela sensação de «meh». Para trás, hora e meia de fantasia espanhola, enésima variação da fórmula «produzido/apresentado por Guillermo Del Toro», matiné para toda a família. Sublinhe-se que nada nos move contra o mexicano de El Laberinto del Fauno ou El Espinazo del Diablo, obras complementares com a Espanha fascista como pano de fundo; o «fantástico» no cinema espanhol dos últimos quinze anos deve-se, em boa medida, a ele e aos seus discípulos. E nós gostamos dessa fantasmagoria alternativa ao universo Disney, grande na pretensão e, quando a coisa corre bem, igualmente bem constituída no resultado. O filme em questão, Mama (entenda-se «mãezinha» e não um qualquer trocadilho à Cinebolso), não peca pela adopção da fórmula Del Toro (um universo infantil que vive à parte do mundo adulto), mas por pespegar-lhe a assombração insatisfeita do século XIX, alma penada pronta a acagaçar tudo o que se lhe puser à frente. Fluxo narrativo, reviravoltas para suspender a respiração ou, vá lá, saltos de fazer desregular a tripa – pouquito, fraquinho, «meh». A dramaturgia do cagaço espanhol nem sempre foi assim, fixada neste anódino estado de arte hollywoodesco – mais forma do que conteúdo, mais verniz do que carne. Nos mesmos anos 90 onde Guillermo del Toro deu o salto a Espanha para mostrar que a Guerra Civil Espanhola pode dar terror redentor, Aléx de La Iglesia perpetrava os seus «crimes ferpectos», destacando-se com o exagerado, delicioso, seminal El Día de La Bestia – o vão de escada (e o telhado!) da Madrid de Almodóvar. Em paralelo, Alejandro Amenábar pegava na herança do uruguaio Narciso Ibañez Serrador (cineasta bissexto e curiosamente, um dos criadores do concurso 1, 2, 3) e provava, desde logo, ser muito melhor contador de histórias do que a maioria dos seus contemporâneos – são dele Abre Los Ojos e The Others, capítulos indispensáveis do terror na transição do século XX para o XXI. Antes, em 1996, Amenábar estreia-se com um orçamento de 116 milhões de pesetas (trocos!) com um filme de terror que é também um filme sobre filmes de terror. Tésis denuncia aquela tesão de mijo que se torna gloriosa se não for mal direccionada (e como sabemos o quão imprevisível é a direcção assistida da urina!) e, ao contrário de Aléx de La Iglesia, Amenábar não está constantemente a reavaliar o processo, incutindo-lhe comicidade ou alívio sardónico. Pelo contrário, torna-o mais sinistro e misterioso. Ángela (Ana Torrent) é uma estudante universitária de cinema (apesar de parecer tia da maior parte dos seus colegas) com uma missão: pesquisar material para uma tese sobre violência no audiovisual. Faz-se amiga de Chema (Fele Martínez), geek desajeitado com uma colecção fastidiosa de filmes violentos. A acção dá duas ou três voltas (não querem que contemos tudo, certo?) e, a dada altura, Ángela vê-se com uma terrível cassete de vídeo em mãos, objecto capaz de comprometer a reputação (e o cadastro) de outro estudante. Trata-se de um filme snuff em que a vítima (torturada até à morte) é uma antiga universitária. A curiosidade de Ángela, o surgimento em cena de uma personagem dúbia (Bosco, interpretado por um jovem Eduardo Noriega), e a evidência cada vez maior do que uma rede de snuff movies pode partir de dentro da própria escola, faz avançar uma história sem fogo-de-artifício, mas com as agulhas a picarem os nervos certos. O cagaço espanhol e Amenábar seriam, a partir daí, generosos na oferta, mas não há terror como o primeiro: Tésis é funesto, acutilante, terrífico. É tesão da boa.

(publicado originalmente na edição de Maio de 2012 da revista Loud!)

terça-feira, 2 de abril de 2013

Sinister (2012)

Diz a história recente do cinema de terror que depois do «esgotamento» do filme slasher, a meio dos anos 80, o cagaço na tela passou a ser discreto, tímido e envergonhado, só se recuperando com o comic relief de Scream a meio da década seguinte. Várias teses se levantam para este deserto de praticamente dez anos, mas gostamos desta: o espírito doidivanas do filme slasher, sempre afoito à catanada, inalação de charro e exibição despudorada de maminhas ao léu, levou a sua própria machadada quando o mundo lá fora começou a ficar sério. Divertimento de pipoca na boca não deveria misturar-se com questões então prementes como a fome na Etiópia ou, tocando no busílis, o descontrolo da epidemia da sida (a meio dos anos 80 já não apenas um «exclusivo» das saunas de São Francisco). Mas a verdade é que tudo isto fez mossa – e não só no lado americano; também no Reino Unido, em vigência Thatcher, se criou um índex para videoclubes (precavendo a juventude contra os chamados video nasties). Apontava-se, então, uma ligação entre a leviandade do cinema de terror e a decadência moral da sociedade. Depois vieram os videojogos e a culpa passou a ser repartida. Na altura em que escrevemos estas linhas, desconhecemos o desfecho do caso Pistorius, mas suspeitamos que a nova Playstation não se vai poupar em first person shooters. E acreditamos numa coisa: não foi só o «pecado» a fazer desaparecer a cinematografia de terror (da mesma forma que a sífilis não refreou a produção de filmes pornográficos); houve também uma decadência natural motivada pela redundância de uma fórmula que era novidade em 1980, mas que já tinha decepado todos os crash test dummies um par de anos depois. No final dos anos 90, The Blair Witch Project fazia outra coisa: criava condições para o cagaço sem a carga meta-referencial que fez de Scream um filme de miúfa amorosa, daqueles em que o susto se auto-celebra. No boom da internet, gravações em VHS eram já vestígio de outros tempos – e tudo o que é obsoleto, de bonecas de louça a um relógio de cuco, tem condições para fomentar a mais genuína cagufa. Este apelo do vídeo amador, do falso real, do «poderia ter acontecido consigo» sustentou (e ainda sustenta, veja-se a saga Paranormal Activity) bilheteiras em tempo de carestia. Sinister, exibido o ano passado, envereda pelo mesmo filão mas tem outro requinte, até por recuperar o tabu dos filmes snuff. Vemos imagens em Super 8 de uma família de quatro pendurada numa árvore, com capuzes enfiados nas cabeças e cordas à volta dos pescoços. Algum tempo depois, Ellison Oswalt (Ethan Hawke) – escritor de livros baseados em crimes reais – muda-se para a casa da família assassinada com mulher e dois filhos. De início, os entes queridos desconhecem que foi no quintal das traseiras que tudo se passou. A tensão é ultrapassada pela paciência da mãe e, sobretudo, pela confiança que, inicialmente, Ellison mostra na sua investigação. Mas este é daqueles casos em que, a cada desenrolar do novelo, a clarividência do protagonista se vai degradando ao ponto de Ellison ser, a certa altura, escravo do «monstro» que criou, atiçado por um projector e uma série de fitas de 8 milímetros encontradas no sótão onde se vêem etiquetadas datas distintas (1966, 86, 79, 98, 2011) e situações também diferentes (traduções livres: «Durante o sono», «Churrasco», «Festa na piscina», «Ceifeira debulhadora» e «Família pendurada»). Sinister – melhor elogio será difícil – faz jus ao título. Ethan Hawke exagera, aqui e ali, nos esgares de «estou a ficar avariado da caixa dos pirolitos», mas ao cabo de 110 minutos não só já mordemos o lábio uma série de vezes como nos colocamos, paulatinamente, as interrogações da ordem – como nos melhores filmes do género. No fim, o desconforto. Sinistro, funesto, próprio de um cagaço de boa colheita.

(publicado originalmente na edição de Março de 2012 da revista Loud!)

Martyrs (2008)

Em 2008, Chipre e Malta aderiram ao Euro (a culpa não é nossa!), o preço do petróleo começou a inchar, Fidel Castro deixou a presidência de Cuba, a queda de um avião matou 71 na China e um ciclone ceifou milhares de vidas na antiga Birmânia – tudo isto no primeiro semestre. Porém, nada nos perturbou tanto como Martyrs, segunda longa-metragem do francês Pascal Laugier, que quatro anos antes não nos assustara muito com Saint Ange, assombração em orfanato. Mas Martyrs, estreado em Maio daquele ano, era de outra cepa e, provavelmente, pelo título «cagão» lá fomos nós sem sobreaviso. Não demorámos muito a perceber que estávamos a brincar com fogo; a entrada de rompante obrigou-nos a carregar em pausa, a respirar fundo, a rebuscar um Victan no fundo da gaveta da medicação. 94 minutos depois não estávamos melhor, ressalve-se. Mas o Victan, se usado com fins legítimos (isto é, uma vez sem exemplo) dá sono e a agrura do mundo lá fora «bate» menos. Infelizmente, o meu LCD Samsung não é o mundo lá fora – é uma espécie de Poltergeist que já acagaçou duas ou três poltronas (todos os dias encontro uma uns centímetros mais distante do móvel do Ikea e já não foi uma nem duas vezes que o maple se escapuliu pela varanda). Aos primeiros minutos, um drama daqueles: vemos a pequena Lucie a escapar de um matadouro pestilento, onde esteve aprisionada e sujeita às piores atrocidades uma boa carrada de tempo (contudo, sem danos sexuais). Sem que os malfeitores sejam identificados, a pequenita é remetida a um orfanato. É nesta rígida instituição de acolhimento que conhece outra petiz, Anna. Tornam-se inseparáveis e, entretanto, Anna descobre que Lucie se vê atormentada por uma desfigurada criatura diabólica. Traumas de infância, quem os não tem? Pascal Laugier, matreiro, avança a narrativa quinze anos. Lucie (a actriz Mylène Jampanoï) entra por uma casa adentro e dispara até não deixar pacote de leite por abrir. Depois vemo-la a telefonar à velha amiga Anna (Morjana Alaoui) dando conta de que já limpou o sarampo aos responsáveis pela sua miserável infância encarcerada e precisa de ajuda para enterrar os corpos. É mais ou menos por aqui que tudo o que dissermos poderá tornar-se o que qualquer site avisa com asteriscos e a palavra em inglês spoiler. Mas não será despiciendo asseverar que a história leva uma volta das grandes, não demorando a responder à nossa impaciente pergunta: «então Pascal, já aviaste meia dúzia em meia hora, o que é que vais fazer no resto do filme?». Às duas por três, Anna (repare-se que deixámos de falar de Lucie, porque será?) trava conhecimento com uma senhora que se apresenta apenas como Mademoiselle e é aqui que o degredo começa. Mademoiselle diz fazer parte de uma sociedade secreta que procura descobrir o mistério da vida depois da morte através da criação do que denominam de «mártires». Ora, mártires não é coisa para qualquer um; e para se ser um, ou seja, para se documentar – de acordo com a teoria macabra da pandilha de Mademoiselle – a vida depois da chegada da ceifeira é preciso ficar-se suspenso «por pinças» entre a existência tortuosa e o, digamos, falecimento. Os mártires ficam, por assim dizer, ali à espera. Num estado que não descreveremos por decoro. Privados de tudo, à espera dessa luz, desse esclarecimento que demora a vir (acreditamos em Mademoiselle?). Um terço de Martyrs é brutal, aflitivo; os restantes dois terços são agoniantes, absurdos, terríveis. Parecendo gratuito na sua oferta, Laugier é – conceda-se – fiel à premissa: ser mártir não é pêra doce, vamos lá ver se Anna se aguenta à bronca. E nós aqui a ver, rabinho a tremer em poltrona igualmente temerosa, olhos em fogo, dois dedos bem metidos na garganta à espera do fim. E que fim...

(publicado originalmente na edição de Fevereiro de 2012 da revista Loud!)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

The Wicker Man (1973)

Não somos fanáticos do trivia gratuito, mas se dizemos, sem que nos perguntem, que Vítor Paneira – antiga glória do meio campo do Benfica – nasceu na freguesia de Calendário, Vila Nova de Famalicão (e carregamos esta cruz desde meados dos anos 80), é compreensível que informação mais valorosa se nos aloje na mente sem esforço. Ocorre-nos que O Exorcista, o bastas vezes evocado filme de William Friedkin, cumprirá em 2013 respeitáveis 40 anos. Mas esta é fácil, dirão vós, cientes de que este atemorizante festim de cagaço foi o filme mais lucrativo estreado no ano da graça de 1973 (e um cromo requisitado desde então). Não desejamos propriamente acender um fósforo na completa escuridão, mas não nos passaria pela cabeça escrutinar (mais uma vez) um filme que dá capas de livros e inesperadas imagens finais de enganadores filmes de gatinhos no Youtube. A curiosidade não nos leva mais longe, mas desvia-nos da auto-estrada, como qualquer «wrong turn» que acabará, mais cedo ou mais tarde, por dar sarilho. E é por altura que recordamos 1973 como um ano em que os títulos de terror puxavam pela gritaria, continuavam a explorar o mistério pueril (bebés do demónio, ainda inspirados por Rosemary’s Baby), e retomavam manobras iniciáticas com lobisomens, canibais, vampiros e zombies (alguns deles cegos, como os do galego Amando de Ossorio), tudo malta amiga que o filme slasher trataria, alguns anos depois, de despachar para sítio incerto. Particularmente inspirados e com uma fleuma impossível de reproduzir do outro lado do Atlântico, os ingleses prosperavam. A Amicus e a Hammer produziam filmes em barda (alguns de cordel, outros que nos arrepiam até hoje), mas nada faria prever que de portas a bater com o vento (e uma ou outra assombração) passássemos para uma ilha nas terras altas escocesas com hábitos completamente estranhos à rigidez da «mainland». The Wicker Man, realizado por Robin Hardy sob argumento de Anthony Shaffer, é a estranheza em forma de filme – e também a prova de que um cenário inverosímil pode tornar-se tão fiável como os cogumelos em lata do almoço de hoje. Neil Howie (Edward Woodward), polícia, recebe uma carta anónima: pede-se-lhe que vá a Summerisle, ilha fértil, onde uma rapariga se encontra desaparecida há meses. E lá vai ele, desconhecendo que a ilha se rege por um culto pagão que aceita que os casais tenham sexo nos campos, que as crianças venerem um gigante símbolo fálico, e que abocanhar sapos é bom para a tosse. Inicialmente cativado pelas belezas locais (sim, há nudez; sim, há Britt Ekland), Howie cedo percebe que nada consegue sacar aos nativos e nem a mãe da menina desaparecida parece existir. O líder da comunidade, Lord Summerisle (quem mais, se não Christopher Lee?!), mantém-no debaixo de olho. As suspeitas avolumam-se e, mais adiante, se aquilatará que a festa que celebra a boa colheita não é só imbuída de bons espíritos, danças patetas ou música lunática (a esse propósito, realce para «Willow’s Song», de Paul Giovanni com os Magnet, folk psicadélica tão dissimulada como uma boneca de louça inanimada). À medida que o novelo se desenrola, entendemos que não há como voltar atrás: Howie está irremediavelmente enredado nas pistas que vai recolhendo, a ilha vai tratando de o dirigir para o precipício. Um e outro concorrem, com ânimos distintos, para um desenlace desconcertante e sinistro. Não há exorcismos, crianças possuídas ou a trinca marota do Drácula: Summerisle despeja-nos a colheita toda em cima – e mais não dizemos. É muita fruta.

(publicado originalmente na edição de Janeiro de 2012 da revista Loud!)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Tenebrae (1982)

Cagaço que se quer cagaço não pode ter um «guia de leitura»: é morder o lábio e esperar pelo papão. Mas ok, sejamos pragmáticos, o cinema tem códigos e um género como o terror dispõe de um «livro de estilo». Fugir enquanto se sobe escadas é morte certa, quem sucumbe aos prazeres do sexo tem pecado escrito na testa e um assassino em série à perna, falar com os mortos não é sarilho se à mão houver uma cartolina, um marcador e um copo. Descrevemos, é certo, clichés do cinema de terror mais formulaico, e não vamos atenuar a tendência ao desvendar o presente objecto desta nossa devoção mensal: Tenebrae, filme de 1982 de Dario Argento, um dos mestres de uma tendência que o mundo conhece como «giallo» e que teve o seu apogeu em telas sanguinolentas sobretudo nos anos 70 do século XX. O «giallo» é o cinema de terror a ir ao médico e a trazer para casa uma receita para ser cumprida à risca: o sangue vai jorrar como se fosse Natal na fábrica da Robbialac; o assassino vai usar luvas, óculos escuros, gabardina e, por vezes, vemos os crimes através dos seus olhos; o manancial de suspeitos é elevado (praticamente, pode ser qualquer um) e não distingue sexo nem idade; no final, percebemos as motivações da matança e concluímos que o perpetrador dos crimes não joga com o baralho todo, apesar de, até ao desenlace, parecer uma pessoa equilibrada e/ou colaborante; há um detective (ou mais) com aquela negligência tipicamente latina e quase sempre um (ou mais) passos atrás da verdade; os protagonistas são actores, escritores, modelos, raramente gente normal com ofícios corriqueiros; braços, pernas ou mãos decepadas parecem, flagrantemente, braços, pernas e mãos decepadas de manequins de montra de loja (mas a gente finge que acredita); há nudez e formas à italiana; a arma do crime é bruta e vulgar (de navalhas da barba a machados de cortar lenha); a banda-sonora é, geralmente, fantástica. Quando Tenebrae chega às telas em 1982, já o «giallo» despachou as suas obras-primas (e uma data de gente inocente) e Dario Argento entregou ao mundo litradas de líquido encarnado, nomeadamente nos estilizados Suspiria e Profondo Rosso. De permeio, Brian de Palma andou nas imediações, mostrando o mesmo apreço de Argento por Hitchcock, o «pai» da dissimulação – e do cagaço, porque não? Mas sendo de 1982 (e isso nota-se num ou noutro penteado), Tenebrae é um filme que respira ainda todos os ares da conspiração e da tensão psicológica dos anos 70, acentuados pela banda-sonora dos inescapáveis Goblin (aqui reduzidos ao terceto Claudio Simonetti/Fabio Pignatelli/Massimo Morante), num registo mais actualizado do que o prog-rock clássico da banda-sonora de Profondo Rosso, e antecipando numa só penada os Daft Punk e os Justice (que samplaram o tema principal em «Phantom», do álbum que tem uma cruz como título). A história, como sempre, é apetitosa. Peter Neal (Anthony Franciosa) é um escritor norte-americano de literatura de terror popular na Europa. Em Itália a promover "Tenebrae", a sua última obra, Neal faz-se acompanhar do seu agente e da sua assistente pessoal. Porém, sem saber, é também seguido pela ex-mulher que, discretamente, o vigia a distância segura. O primeiro crime acontece e Neal recebe uma carta que o informa de que foram os seus livros a inspirar o homicídio. Novos crimes (só mulheres, coitadas) e Neal já não é só um escritor famoso a promover o seu livro; torna-se peça fulcral de um puzzle que a polícia tenta resolver com aquele talento trôpego a que Argento nos habituou. Como sempre, ficamo-nos por aqui para evitar estragar surpresas, mas não evitamos salientar que Tenebrae é «giallo» dos sete costados, exibe pescoços trespassados por lâminas afiadas, fugas trepidantes e – motivo de distinção – um canídeo tresloucado capaz de saltar cercas e vedações como gente grande. Somos sensíveis a pormenores deste calibre: dão-nos cães raivosos e solta-se-nos uma lagrimazita teimosa. É terror de cordel? É, sim senhor. E não queremos nós outra coisa.

(publicado originalmente na edição de Dezembro de 2012 da revista Loud!)