Conheci o velho Charles Lee Ray há uns bons
vinte anos. Era pequeno, atarracado, vestia uma jardineira com uma camisola
listada por baixo, olho azul rezingão, canto do lábio franzido à Billy Idol,
cabelinho não demasiado curto, cor de fogo, com uma espécie de risco ao lado
mal engendrado. Mandou-me logo à merda e ficámos amigos. Quem mo apresentou
foi, crédito lhe seja devido, o primo do Diogo. Foi num fim de tarde e
estávamos os três – eu, o Diogo e o primo – sentados no sofá da sala deste
último. Aprisionado numa VHS no interior do videogravador não estava, por uma
vez, uma amiga de Rocco Siffredi ou Nacho Vidal; estava o boneco Chucky. Child’s Play, fita de 1988 de Don Mancini, trataria de nos mostrar, nessa
tarde, que Charles Lee Ray e Chucky são uma e a mesma pessoa. Anos depois,
quando o filme se transformou em saga (chegou ao quinto tomo), e já na ânsia de reflectir sobre estas coisas do cagaço, cheguei à conclusão de que a história de Chucky é a história de um homem a querer sair do seu corpo (e como esta noção será útil mais adiante, meus amigos). Convirá, por ora, explicar que Child’s Play conta a história de como um bandido enclausurado no interior de um boneco daqueles que dizem «mamã, papá, sou teu amigo» procura, a todo o custo, voltar a ter uma existência real – para tal, perpetrando um sem número de patifarias. Charles Lee Ray é o «Lakeshore Strangler», criminoso que, à beira da morte, prefere recorrer a um ritual vudu para entrar no «corpo» de um Good Guy (a marca de um patusco brinquedo falante) em vez de sucumbir sem glória. Estamos perante o adorável mercenário que, respondendo a um considerando negativo por parte de uma idosa («ugly doll»), atira um bem afinado (e infalível) «fuck you!». Está claro que a vida não se torna fácil
para Chucky que, filme após filme, continua sem arranjar maneira de voltar a ser o estrangulador carniceiro que já foi (ou seja, de reverter a maldição). Dez anos depois da estreia, com dificuldades em esticar mais a corda (o volume 3 introduz Chucky num colégio militar…), o realizador Ronny Wu apresenta uma nova personagem à trama: Chucky tem uma noiva, Tiffany, donzela de voz irritante que se transforma em boneca caprichosa. A «série» resolve, aí, tornar-se uma auto-paródia e Chucky, remendado pedaço a pedaço (daí as cicatrizes atrozes no rosto), é agora ainda mais revoltado e, como todo o revoltado a quem calha o azar de viver dentro de um boneco de cabelo ruivo, é involuntariamente cómico. Cereja em cima do bolo, depois de Bride of Chucky,
chega em 2004 Seed of Chucky, o derradeiro filme da colecção – e, fechando o círculo, de novo com Don Mancini a escrever e a realizar. A «semente» é nada menos que Glen, filho de Chucky e Tiffany, fruto do amor virulento entre dois bonecos e – assim desejava o pai – possível sucessor das artimanhas do progenitor. Só que, ironia suprema, o esguio Glen não tem o fervor másculo do pai, não herda dele sequer a voz crispante (de Brad Dourif), magnífico rosnar apoquentado que nos habituámos a louvar. Glen é, digamos, um tanto ou quanto efeminado; acredita em valores (bizarros, aos olhos do pai) como a paz, o amor e a concórdia, é uma jóia de moço (mas que recorre à maquilhagem com propósitos distintos de um Gene Simmons). No fundo, parece – também ele – querer sair do seu próprio corpo (mas por outros motivos: quer ser Glenda). Sem perspectivas de vir, no futuro, a lançar morteiros no parque com os netinhos, Charles Lee Ray despediu-se para não mais voltar. Às vezes vemo-lo no eBay, novamente aprisionado, em action figures ainda mais pequenas e atarracadas. Desistiu de tentar.