segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Buried (2010)

Sobre o corpo tremeliquento, um uniforme descartável vagamente assemelhado à «farda» de uma sexagenária a caminho da mercearia. Os pés gelados, um nó na garganta, uma ligeira – mas muito ligeira – percepção cómica do ridículo: encontro-me num cubículo parecido com uma cabine de provas da Zara, mas sem um espelho para pôr a vaidade em dia. Dois cabides, um banco corrido, a porta semi-aberta e eu para aqui deixado, encolhido, numa espécie de tempo suspenso, com um ontem bem distante e um amanhã que nunca mais chega. Basta de poesia: estou há quinze minutos à espera de um batalhão de batas brancas. É mais ou menos por esta altura que costumo abrir os olhos, respirar de alívio, levantar-me para mais um dia a virar frangos. Mas hoje não há beliscão que me devolva ao conforto do colchão. Sou chamado por uma operacional dois palmos mais alta do que eu. Tem o cabelo apanhado atrás, uma placa que diz «Patrícia», e fala por monossílabos – ok, é um filme português; até porque se fosse francês, não usaria sutiã. Sou conduzido a uma porta mais adiante. Estou agora numa sala climatizada, com um vidro a separar-me de uma espécie de régie. «Deite-se na marquesa, isto dura 20 a 30 minutos, vai ouvir sons muito ruidosos, até já», diz-me um pequenote (de bata branca, claro). Ai Jesus que lá vou eu. Queira o estimado leitor saber que isto não é a sinopse da minha primeira longa-metragem, mas sim o relato acagaçado da minha primeira ressonância magnética. E se há epifanias que fazem mudar, por completo, a nossa relação com o mundo, esta situação – estando longe de ser fabulosa – fez, pelo menos, com que mudasse a minha relação com o medo (que não me assistia, como se usa dizer agora) de dar por mim acordado, fresco como uma alface, mas sete palcos abaixo do chão que piso todos os dias. Remetido ao interior de uma urna, sem escapatória, e na companhia de uma banda-sonora infernal que não desejo ao maior acólito de Skrillex, ponho em causa pela primeira vez a minha mais firme convicção de que enterrado vivo não irei desta para melhor. Por dolorosos 20 a 30 minutos, sinto-me como o Ryan Reynolds no Buried (Rodrigo Cortés, 2010), mas sem telemóvel, isqueiro, ou um cutelo afiado. E ali dentro, apesar de mais arejado do que Reynolds, foi nele e no seu fado que pensei. Abandonado à sua sorte num caixão exíguo, claustrofóbico, e com uma gama de recursos à qual só Angus McGyver conseguiria dar sentido, Reynolds é Paul Conroy, civil norte-americano no Iraque, condutor de pesados sequestrado por malfeitores e com o oxigénio a conta-gotas. Depois de algum impasse – é aceitável que quando acordamos num caixão, precisemos de pôr algumas ideias em dia –, o pobre Conroy fica a saber, via telemóvel, que a sua vida vale 5 milhões de dólares e alguém vai ter que se chegar à frente com o vil metal. O que se segue é outro pesadelo comum a este que vos escreve: ter de fazer telefonemas para resolver coisas. Mas uma coisa é ligar à TV Cabo com a tanga de que preciso da Sport TV por motivos profissionais outra é ter que ligar a serviços de apoio a cliente para, digamos, evitar ter o mesmo fim que muitos dizem ter sido o do cantor Carlos Paião (mito urbano, diga-se). Estou eu a pensar nessa ironia macabra que é ter de ouvir «aguarde um momento, por favor» ou «entraremos em contacto consigo assim que conseguirmos resolver o problema» quando temos a vida por um fio, e – ao fundo do túnel – deixa-se espreitar a luz do dia. Ou a iluminação artificial da sala climatizada com aquele odor tipicamente hospitalar que agora me parece tão bem-vindo. Tudo menos electrónica à Skrillex. Tudo menos o pânico da morte de olhos abertos. «Tenha cuidado a descer da marquesa», diz-me outro operacional de bata branca. Tenho, sim senhor. E vou pôr-me na alheta. Ao contrário do que dizia a outra, estar vivo não é só o contrário de estar morto. Boa sorte, Paul Conroy. Vê lá se sais daí.

(publicado originalmente na edição de Novembro de 2012 da revista Loud!)

Phantom of the Paradise

Houve uma altura, no início da saudosa década de 70 do século XX, em que Brian De Palma se deixou de comédias de pândega e abraçou a nobre arte de acagaçar o próximo. O clique deu-se com Sisters, em 1973, acentuou-se com Obsession, em 1976, ano em que este nativo de Nova Jérsia (como Bruce Springsteen ou Jon Bon Jovi), definiu ainda mais a sua musa (e não falamos de Nancy Allen) com o inescapável Carrie (um pequeno interlúdio para uma confissão embaraçosa: durante anos, na pré-história deste meu fetiche pela semiótica do susto, julguei que «Carrie», canção dos suecos Europe, fosse uma homenagem ao clássico em que Sissy Spacek tomou dois banhos no mesmo dia). De Palma, trintão na década em que o bigode de Burt Reynolds valia mais do que a cláusula de rescisão de Hulk, continuou a sua caminhada triunfante até meados da década seguinte, ocasião em que se meteu, definitivamente, no «grande cinema» (ou seja, todo o que não entrará nesta página). Registe-se The Fury (1978), com Kirk Douglas e John Cassavetes (e insira-se aqui a expressão «sonho molhado» a troco de nada); o nervoso Dressed To Kill (1980), com Angie Dickinson, Michael Caine e uma Nancy Allen (companheira do cineasta) em ascensão; Blow Out (1981), com a mesma Nancy Allen (terceira referência em 4 mil e tal caracteres, um record pessoal) em posição de maior destaque (e o rapaz John Travolta em modo temerário, e um John Lithgow com a astúcia de um crocodilo); o estelar Scarface (1983), escrito por Oliver Stone, com Al Pacino a dar vida ao nome Tony Montana (e Tony Montana a dar vida ao nome Scarface); por fim, Body Double, festim de maus penteados em que durante boa parte do tempo julgamos que o nome de Melanie Griffith na ficha técnica é um erro de impressão. Antes de apurar este estupendo jogo de gato e do rato (comum a boa parte dos seus filmes), De Palma resolveu meter tudo no liquidificador para ver o que saía. Chegamos, assim, a Phantom of the Paradise, filme estreado um ano depois do tal «clique» (a transição para meandros sanguinolentos) e que se apresenta como uma mixórdia de terror, comédia, fantasia, ficção-científica, suspense e – tenham medo – musical. Mas calma, estamos em 1974 (dois anos depois em Portugal), a estética é glam-rock e as referências tanto vão de O Fantasma da Ópera e O Retrato de Dorian Gray como a Fausto, num enclave perigoso (no bom sentido) entre o repertório de Elton John na primeira metade dos anos 70, os primeiros delírios de Kevin Ayers e, inevitavelmente, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars, a fantasia glam de David Bowie. Phantom of The Paradise (que em Portugal se chamou O Fantasma do Paraíso) é o produto típico de uma era em que músicos e cineastas fumavam as mesmas pedras: conta-se a história do pianista/cantor esquizóide Winslow Leach (um «geek» de estatura alta que poderia ter sido pai de Erlend Oye, o ruivo espadaúdo dos Kings of Convenience), que é usado (e abusado; aqui faz sentido o cliché) por um produtor musical/svengali de pouco mais de metro e meio (e, já que estamos numa de comparações, nos lembra o atarracado mentor dos Da Vinci). Swan, assim se chama o produtor (interpretado por Paul Williams, dois réis de gente que viria a compôr «We’ve Only Just Begun» para a voz de Karen Carpenter e, surpresa!, escreveria a letra do genérico de O Barco do Amor), promete a Winslow projecção que este nunca conseguirá por si próprio, adjudicando-lhe a «sinfonia» que estreará Paradise, sala de variedades prestes a abrir portas. Winslow (magistral interpretação do recentemente falecido William Finley) é ingénuo e acaba na cadeia, primeiro, perdendo o controlo sobre a sua obra; depois volta a «trabalhar» (na rectaguarda) para o satânico vilão, adocicado pela promessa de que a obra-prima que engendrará será interpretada pela ingénua Phoenix (Jessica Harper, que veríamos, três anos depois, como protagonista de Suspiria, de Dario Argento), por quem se apaixona. Só que por esta altura, Winslow não só está desfigurado como perdeu as cordas vocais (e não precisamos de dizer a quem se deverá atribuir a culpa). É ele o «Phantom of the Paradise», vingativa personagem que procurará «corrigir» com grande estrondo todo o mal que lhe foi feito. Pelo meio, vemos uma ópera-rock que faria corar Pete Townshend. E sentimos saudades do tempo em que o cinema (e a música) se misturavam com «medicação» proibida. Mais droga para esta mesa, se faz favor.

(publicado originalmente na edição de Setembro de 2012 da revista Loud!)