sexta-feira, 20 de abril de 2012

Fritt Vilt (2006)

Falar de cinema escandinavo não é tão absurdo como meter Espanha e Portugal no mesmo saco e escrever por cima, a marcador, «cinema ibérico». Por cá, fadistas que somos, estamos a milhas do que os barulhentos espanhóis fazem na grande tela (e na Semana Santa em Viana do Castelo); se «descermos» ao cagaço, então, somos José Mourinho a levar 5 de Guardiola e a encolher os ombros no fim. Não é que Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca (no sentido dos ponteiros do relógio) façam, no que ao terror e fantástico diz respeito, uma e a mesma coisa (ainda que a mitologia viking possibilite pontos de contacto). De resto, manda a honestidade dizer que, baseando-me no meu fiel ficheiro Excel, não terei alguma vez visto película (exclusivamente) finlandesa – um mistério que hei-de resolver mal acabe estas linhas. No thriller/terror dinamarquês é inevitável destacar Ole Bornedal (Vikaren, Nattevagten, Kærlighed På Film), que se fosse um detergente seria, claramente, recomendado pelas melhores marcas de máquinas. Mas também gostámos de Midsommer, de Carsten Myllerup, especialmente por se passar em cenário universitário, e da secura desconcertante de Offscreen, de Christoffer Boe. Do país dos Ace of Base, aparentemente mais económico na produção de terror e associados, chegou-nos Den Osynlige (que teve direito a remake americano como The Invisible), o novamente «universitário» Strandvaskaren (de Mikael Håfström, cavalheiro que iria para a América fazer Derailed e 1408) e – em domínio vampiresco – o esquecível Frostbiten e o memorável Låt Den Rätte Komma In (do mesmo realizador que, surpresa, endereçou uma curta-metragem a Durão Barroso). Ponta de lança escandinava e pátria de Anni-Frid Lyngstad (a ruiva dos ABBA), a Noruega é um ver-se-te-avias: zombies nazis em Død Snø, vizinhança atrevida em Naboer, equipa de televisão às aranhas num bosque em Villmark, ecos de um passado trágico em Skjult, um abnegado caçador de trolls em Trolljegeren (um daqueles filmes que, infelizmente, se vão esgotar em discussões estéreis sobre CGI). Manda a nossa costela slasher (e a alta autoridade para o name dropping) dizer que o melhor, contudo, estará na saga Fritt Vilt (e vão 3), encetada em 2006, sob batuta de Roar Uthaug. Tem tudo: um grupo de amigos onde há moças bem-apessoadas, neve em abundância, um hotel abandonado, um vilão esquivo e uma história trágica que a memória (mas não os recortes de jornais) quase apagou. Jannicke, Morten Tobias, Eirik, Mikael e Ingunn vão de férias para a neve (redundância; estamos na Noruega, pá), sedentos de pôr o snowboarding em dia. Só que chegados ao manto branco, o rapaz de nome mais composto (Morten Tobias, uma espécie de Gonçalo Maria) parte a perna e a malta vê-se obrigada a pernoitar num majestoso hotel abandonado onde se passaram coisas más nos anos 70 (além de colarinhos enormes e calças à boca de sino). Escusado será acrescentar que o grupo não está sozinho e, em três tempos, acontece o que, em altruísta manobra anti-spoiler, denominaremos sempre de «coisas». Se quiséssemos ser «especialistas», elogiávamos agora o ritmo, a concisão, o equilíbrio perfeito entre os momentos de espera e os que fazem precipitar, de facto, o desenlace (e, a propósito deste, lembre-se que o filme tem sequelas). Mas não somos especialistas e preferimos torcer por Jannicke, a rapariga mais corajosa do grupo. E evitar todas as piadas sobre «room service», «wake up call» e outros recursos fáceis do jargão dos albergues.

terça-feira, 10 de abril de 2012

The Divide (2011)

Era António Guterres chefe do governo quando este que vos escreve enfrentou a sua primeira experiência profissional. Quatro horas por dia no serviço de informações telefónicas da Portugal Telecom – vulgo 118 – parecia, à partida, indolor (e os 70 contos davam jeito). Doze meses depois, sabia de cor os telefones da Maternidade Alfredo da Costa (RIP), da transportadora Luís Simões, do geral da RTP ou das louças Arcopal. Dei contactos do futebolista Oceano, de Júlio Isidro, do escritório do doutor Garcia Pereira, da editora discográfica dos Excesso. Tive de verbalizar localidades como Picha e descobri o telefone do Cardoso do Talho, que «fica aqui ao fim da rua» (a maior parte das vezes «o fim da rua» não era a Andrade Corvo, em Lisboa, mas uma ladeira em Traulitadas de Baixo). Ajudei a comunicar óbitos, a cobrar dívidas, a entregar prémios. Recebi propostas atrevidas de homens e mulheres, de crianças e idosos, com carinho e à bruta. Aprendi a falar devagar e a despachar-me depressa. E a dizer «obrigad' nós». Doze meses depois, tinha um ou dois fusíveis fundidos e uma vida pela frente. Certo, mais uma introdução biográfica e que raio tem isto a ver com um filme do ano em que Pedro Passos Coelho subiu à cadeira do poder? Três palavras: dinâmica de grupo. Então como agora, trabalhar com telefones não exigia um intelecto fervilhante (até é desaconselhável); mas para que o processo de recrutamento decorresse by the book, era preciso prestar provas. Exercícios que ajudassem o empregador a perceber se deste lado não estaria um carniceiro em série (ora aí está um filme por fazer: The Call Center Killer), ainda assim menos anedóticos do que as charadas da recruta militar. Um deles consistia em meter uma fornada de candidatos numa sala fechada para discutir questões como «quem salvaria em caso de catástrofe global: um médico, uma prostituta, uma criança, um pedreiro ou um atleta?». Mais do que uma resposta consistente, interessava observar err… dinâmicas de grupo. Ou seja, como quatro ou cinco marmanjos (e marmanjas) se relacionavam sem desatar à batatada. The Divide (Xavier Gens, 2011) é um desses exercícios, mas em cenário extremo: há uma série de explosões nucleares em Nova Iorque e os residentes de um bloco de apartamentos têm que se refugiar na cave do edifício para melhor protecção do perigo. Só oito conseguem fazê-lo antes de Mickey, o responsável pelo condomínio, selar a porta: um casal de namorados, dois irmãos e um amigo, mãe e filha, e um indivíduo sem filiação óbvia. Mickey toma as rédeas da situação, contrariado. É um antigo militar que faz da cave o seu bunker: tem mantimentos mas hesita em partilhá-los, disponibiliza a contra-gosto uma latrina para as necessidades da malta, manda calar quando a conversa não lhe interessa, recusa qualquer responsabilidade na protecção do coiro alheio. Os restantes defeitos da humanidade distribuem-se pelos outros: o casal está em vias de se separar, a traição é recurso aceitável ao cabo de poucas horas, cortam-se uns dedos a troco de pouco. O problema é que quase duas horas depois está quase tudo na mesma (excepto a saúde mental dos envolvidos, que muda para pior): o mundo lá fora está lixado, o melhor é ficar cá dentro a apodrecer. Xavier Gens quer contar uma história  de luta pela sobrevivência (reflectindo na tela as famigeradas dinâmicas de grupo), mas parece ter mais talento para filmar matança sem piedade (é dele o filme francês Frontières) do que para perscrutar as minhocas que toda a gente tem na cabeça. Ou seja, é mais 112 do que 118.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

10 Rillington Place (1971)

Aqui há atrasado, a reboque do elogio ao filme slasher, falávamos do serial killer como vilão pobre de recursos e algo monótono no exercício do seu passatempo. Que fique assente que não é nossa intenção dar ideias. O filme consagrado a essa figura reincidente na limpeza do sarampo de terceiros tem outros predicados – especialmente se for bom. A estampa psicológica de um Jason Voorhees nunca foi motivo de discussão (nem me parece que mereça; um slasher não tem que se preocupar com isso), mas a psique cabeçuda de um John Christie (o assassino do número 10 de Rillington Place, adiante apresentado) requer outro tipo de cuidados. Se o filme slasher, pela sua natureza funcional, coloca o acento tónico (ou o ácido sulfúrico, se quisermos ser mais literais) na forma como cada desgraçado é devolvido ao criador (ou seja, na evidência de que não se morre sempre da mesma maneira), o filme de serial killer é mais umbiguista: a vítima importa menos do que os labirintos mentais do seu carrasco. Não raras vezes, o filme sobre um assassino em série é inspirado em situações verdadeiras já dissecadas pela criminologia. Enquanto o slasher é fantasia (e humor e exagero, ao abrigo de um desviante código de honra), este é para mudar as fechaduras da porta. 10 Rillington Place é um filme inglês de 1971, realizado por Richard Fleischer e protagonizado por Richard Attenborough (o irmão mais velho de David, o homem que fez vida a devassar a privacidade de alces e cabritos-monteses). O ano é 1949. No número 10 de Rillington Place mora John Christie e a sua mulher, Ethel (personagem secundária, submissa, irrelevante). No piso de cima, está um apartamento para arrendar. Beryl e Tim Evans (o actor John Hurt) – casal pouco abonado, com uma filha (Geraldine) – tornam-se inquilinos. Mas sem dinheiro, entregues a discussões constantes e com a família prestes a crescer (Beryl está de esperanças), pouco lhes resta a não ser aceitar uma oferta generosa do extremoso senhorio, a quem devem o pagamento da renda – fingindo ter experiência médica, Christie oferece-se para praticar um aborto. O que se segue é o desencadear de um tenebroso caso verídico (que ecoa também acontecimentos anteriores), contado à boa maneira inglesa e com uma interpretação estupenda de um actor (Attenborough) que pensou duas vezes antes de aceitar o papel (não fosse levar com uma marreta ao atravessar a rua). Vem-nos à memória a estética dos filmes da Hammer (a produtora responsável pelos melhores cagaços bifes das décadas de 60 e 70), mas aqui não se brinca às histórias de arrepiar: o sacana do velho era mesmo levado da breca. Aos interessados pelo turismo do macabro: Rillington Place não resistiu ao poder de um bulldozer (nem ao da toponímia: agora chama-se Runston Street).