sexta-feira, 30 de março de 2012

The Children (2008)

Não há que enganar: no cinema de terror, as crianças ou são vítimas ou são cruéis agentes do crime. Em qualquer dos casos, mostram-se rijas e engendram, afincadamente, os respectivos planos de fuga ou ataque. Raramente falecem – mas se tal sucede é porque o filme precisa de tamanho desaire para, digamos, existir (o caso do clássico Don’t Look Now). Se acreditarmos (e eu acredito mais ou menos) que o cinema do cagaço pode ser uma versão tétrica da vida lá fora, então é justo assumir que há quase cem anos se transportam para a tela os reais medos do desconhecido. Cagaços de meia-noite que se materializam em demónios invisíveis, fantasmas do passado, criaturas bizarras do futuro ou do espaço, animais imprevisíveis (e imprevisível tanto pode ser uma aranha como um crocodilo) e – aí vêm elas – crianças. A psicanálise fica para outro carnaval (ou reunião de pais); interessa aqui assinalar a intemporalidade e a universalidade do tema. Do filhote chifrudo de Rosemary, no clássico de Polanski (que o meu DVD comprado em Espanha designa de La Semilla Del Diablo) às infantes almas penadas do cinema asiático do século XXI, sem esquecer The Omen e seus sucedâneos. The Children, do inglês Tom Shankland, evoca – sem querer – palavras cantadas por Carlos do Carmo: «Parecem bandos de pardais à solta / Os putos, os putos / São como índios, capitães da malta / Os putos, os putos». Eis-nos chegados a outra fórmula costumeira: a criançada que faz patifarias em bando. A canalhada, como se usa dizer para os lados do Douro. Casais amigos (ah, o que esperámos para usar esta expressão tão patusca) levam criançada para uma casa na neve, por alturas do Natal. Os pais são ingleses, bem-apessoados, copo de vinho branco na mão, lareira acesa, malhas de boa griffe, conta bancária a respirar saúde. As crianças são, enfim, crianças, naquela linha estreita entre o saturante e o adorável (e é por isso, no fim de contas, que gostamos delas). Pequenos incidentes ocorrem, prontamente desvalorizados. Os pais, claro, não desconfiam dos petizes. A miudagem não se deixa apanhar. Até que a coisa descamba. Como sempre, não nos alongaremos no que a acção, a seguir, nos dá a ver. Podemos, porém, afiançar que se coisa semelhante acontecesse connosco, já teríamos pegado no carro e dado de frosques – mas, hélas, ainda não somos pais nem entramos em filmes bifes. The Children vinga (e vinga bem, já que perguntam) porque se dá bem com os contrastes: vermelho vivo (do quê, adivinhe-se lá!) sobre brancura de neve; brutalidade em contexto de concórdia natalícia; traição em ambiente familiar de insuspeita tranquilidade. É a antítese do filme «mitra» inglês, em que a insalubridade do meio já antecipa (ou prepara) algo de negativo. Gostámos? Pois claro. Mas já vimos publicidades menos eficazes ao sexo com preservativo.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Baghead (2008)

Horror, deboche, degredo: o estigma social. Para um pai, petiz que mostre simpatia pelo cinema do calafrio (queríamos dizer «catanada», mas vamos com calma) está, obviamente, no lado errado da vida – e acabou-se a semanada. A família junta-se em pânico, planeia-se uma «intervenção»: há que pôr termo ao vício danado, há que devolver o pequeno Paulo Jorge (nascemos nos anos 70, não vamos em Salvadores e Martins) ao mundo dos vivos e saudáveis. «Se conseguimos com o chamon…». Paulito resiste, fecha-se no quarto, empurra uma estante cheia de VHS de filmes censurados contra a porta (o vídeo de Driller Killer, empenhado assassino do berbequim, cai e espatifa-se no chão), reza a Freddy Krueger para que lhe apareça em sonhos. A sua raiva é a de Damien, o pequeno demónio de The Omen; os olhos são os de Damian Marley, inebriado que está pela ganza resgatada ao fundo falso de gaveta onde jaz também a primeira longa-metragem de Traci Lords. Seguro de si, coloca a máscara de um dos irmãos Cavaco (referências nacionais da evasão de cadeias), abre a porta e pergunta: «é outra vez lulas para o jantar?». Isto poderia ser o mote de um filme (mau) dos anos 80, mas é só uma maneira enviesada de aludirmos a um pudor muito próprio do cinema do cagaço: um vilão só dá a cara a muito custo. Há quem o faça por necessidade estética (a face de Jason Voorhees é imprópria para consumo, daí a máscara de hóquei), por incapacidade prática (Chucky está aprisionado no interior de um boneco), e por desleixo ou falta de recursos: eis-nos perante Baghead, um maltrapilho que faz das suas com um saco na cabeça. Em Portugal, cobriria a cabeça com um saco de plástico do talho da esquina; numa América «indie» e ecologicamente responsável, estamos perante a opção papel (é assim que eles transportam as compras; seria também assim que um português perderia metade da fruta pelo caminho). De baixo orçamento, Baghead é cinema sobre cinema, solução capaz de transformar os clichés mais hediondos em pretensas ideias astutas (às vezes corre bem, conceda-se). Não é um filme sobre rapaziada que vai para uma cabana e é atormentada por um sacana com um saco na cabeça. É um filme sobre rapaziada do cinema que vai para uma cabana tentar escrever um argumento sobre um grupo de amigos atormentado por um sacana com um saco na cabeça. Rapaziada essa que vem a ser – vá-se lá saber porquê – sacaneada por um vilão nos preparos já referidos. Nitidamente com os trocos contados, os irmãos Duplass safam-se bem porque os actores têm jeito para a coisa. Entre rapazes e raparigas (2+2), há os traiçoeiros, os ingénuos, os cautelosos e os impacientes. Há uma cabana, um carro, uma floresta. E – já dissemos? – um malfeitor com um saco metido na cabeça. Para nós chega bem.

terça-feira, 27 de março de 2012

Missing / Sil Jong (2009)

Há uns anitos era ver-nos de cabeça enfiada naquelas piscinas de DVDs do Media Markt, onde cabem películas inenarráveis (e outras com o Steven Seagal na capa) e um sem-número de filmes infantis, enfeitiçados que estávamos pelas palavras mágicas «a partir de». A seguir vinha uma cifra em euros suficientemente baixa para nos fazer sujar as mãos – e acreditamos que alguma da poeira que depois retirávamos debaixo das unhas já ali estava desde a primeira vez que Jason Voorhees tirou o sarro a uma catana. Os erros eram comuns: primeiro, porque comprávamos filmes «a olho» (e isso explica, por exemplo, Forest of the Damned); depois, porque não era raro chegarmos a casa com uma pechincha «optimizada» para ecrãs 4:3 (o ecrã quadrado dos antigos televisores); por fim, porque comprávamos «ao quilo», gastando numa pilha de filmes inúteis o mesmo que poderíamos despender numa aquisição realmente valorosa. Poderia agora dizer que o tempo e a experiência me fez bem, que apurei o instinto, que me tornei um consumidor responsável, mas estaria a mentir com tantos dentes quantos os de Chucky quando nos pede amizade. Agora adepto do comércio online, faço ainda pior, tornando o que era antes um ingénuo hábito de «digging», prática autorizada pelo livro de estilo do coleccionismo (não obstante a parca higiene da tarefa), numa tendência compulsiva para a compra metódica. Paradoxo? Eu explico. Trata-se da compra que obedece a um único critério: a colocação do preço por ordem crescente. Começa-se no euro e pouco e vai-se subindo, galgando mono atrás de mono, escarafunchando no entulho, sempre na esperança de encontrar o que falta. Como «o que falta» não aparece, vai-se comprando o que não falta. É uma tragédia a que assistimos, impotentes, na condição de protagonista. Missing (Sil Jong, no original sul-coreano, de Kim Sung-Hong) apareceu-me assim, sem agasalho, tremeliquento e choroso, a pedir uma mão amiga. Dei-lhe 6 euros e pouco e trouxe-o para casa. Agradecido, não demorou a atiçar-me: na capa lê-se qualquer coisa como «a fazer jus a Sexta-feira 13». Conta-se a história de uma jovem actriz que vai de viagem para o campo na companhia de um realizador, esperando que este lhe dê o papel que tanto deseja. Os dois resolvem parar para comer uma sopa de galinha e são recebidos por um homem de meia idade, feliz proprietário de um rottweiler e de uma série de barracões propícios ao encarceramento de inocentes. Não é preciso dizer que a personagem masculina passa rapidamente à história e a bela Jeon Se-hong (a actriz) fica à mercê da caixa de ferramentas deste nosso «redneck» sul-coreano. Até que a irmã da actriz (Chu Ja-Hyeon), também ela bem parecida (mas um número abaixo, pormenor que se revelará importante) se põe a caminho para ver o que se passa. A existência desta segunda etapa (primeiro uma irmã, agora a outra) incute um valor acrescentado a Missing, fita que ameaça ser daquelas intermináveis sessões de tortura, mas que até economiza na ostentação do sofrimento (qualquer visita ao dentista será mais explícita) e vinga quando nos conta a história do gato e do rato. É a prova de que assomos consumistas de madrugada podem, às vezes, dar bom resultado. Mas não diga que vai daqui.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Absentia (2011)

Em Novembro do ano passado, este que novas vos traz foi agraciado com um aparelhómetro da Apple que rapidamente se assumiu como a coqueluche das telecomunicações lá de casa. Além de ter relegado os restantes telefones móveis para um apertado bolso das calças (sim, porque o iPhone afinfou-se logo ao casaco), relegou também o gato para outro espaço da casa (aquele onde o bicho da Apple não está a carregar), não vá o choque de titãs resultar em danos para qualquer uma das partes (mas sobretudo para o mai’novo, que ainda não se sabe defender). Isto para dizer o quê? Que a mera condição de proprietário de um iPhone me incutiu, fugazmente, aspirações à feitura de uma curtíssima metragem – a mui retro aplicação 8mm tem o condão de nos fazer acreditar e há um prédio com a fachada (e o que sei lá mais) em ruínas na rua. Digo fugazmente, porque as minhas perdas de juízo são, por enquanto, erupções de curta duração e alguém tem de fazer o jantar. Absentia (Mike Flanagan, 2011) parece ter sido feito com não mais de 15 contos, mas foi dinheiro bem aplicado. Topa-se a milhas que é produção independente (e independente, sobretudo, do capital que permite comprar maquinaria cara), que os actores são compinchas do realizador e terão sido pagos em senhas de refeição, que o catering não terá passado de água com groselha e línguas de gato. Não basta ter uma boa história, mas ajuda. Daniel, o marido de Tricia, está desaparecido há 7 anos e apresta-se para ser declarado «morto por ausência». Tricia quer «enterrar» definitivamente Daniel mas não consegue: continua a «vê-lo» nos sonhos, nos espelhos, em toda a parte. Callie, a irmã mais nova, acorre para ajudá-la a preencher a papelada do óbito e aproveita para passar por ali uns tempos. Quando Tricia se prepara para levar a vida em diante (na companhia de um generoso detective que acompanhou o caso), um acontecimento que, deliberadamente, vamos omitir (e não é por pirraça) muda o «estado de coisas». Paralelamente, a irmã – que trouxe consigo uma caixinha de drogaria – começa a suspeitar de um túnel mesmo ali ao pé de casa, uma espécie de portal «engolidor». Precisamente por causa da drogaria, não é levada a sério e é também por isso que o filme tem uma hora e meia. Absentia poderia ser uma curta-metragem económica, intrigante e eficaz; como longa, é igualmente económica e intrigante, mas menos eficaz na manutenção do mistério. Talvez estejamos a valorizar demasiado a ideia – e menos a sua prossecução –, mas já em criança era o jogo das escondidas que nos metia mais medo. E, valha a verdade, é por causa do cagaço que aqui estamos.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Secuestrados (2010)

Há uma altura nesta nossa aventura no planeta Terra em que conseguimos sustentar a validade e a pertinência do nosso discurso (e da nossa vida, porque não?) com base em duas atitudes antagónicas: o recurso a todo e qualquer cliché que ajude a emoldurar a nossa forma de agir ou de pensar; ou a recusa absoluta de frases e procedimentos usuais, numa extenuante demanda de originalidade. As duas atitudes são sustentáveis ou insustentáveis consoante a matéria-prima dos seus «portadores» – normalmente quem está a meio caminho entre as duas posições e não é obrigado a pensar na vida nestes termos é que a vive como deve ser (o que nos coloca, desde já, do lado de fora deste clube). Mas uma coisa é a vida (e as dívidas, e se vamos tomar o café no sítio do costume ou no outro que baixou o preço, e por que é que não se fez nada de jeito no fim-de-semana); outra é o cinema de terror. Aqui, assumimos, não nos dá muito que pensar o embate com o cliché: ajuda-nos a negligenciar a subjectividade, a cancelar temporariamente a dúvida, a opinar sobre coisas sem o peso da definição. É por isso que vamos sempre abordar os longos cabelos negros sobre as faces das esquálidas criaturas defuntas do cinema asiático sem precisar de esclarecer logo que «asiático» é uma generalização para sul-coreano, japonês e, aqui e ali, tailandês; é por isso que dizemos que o cinema espanhol reflecte a vida espanhola tal como ela nos parece que é, e que os diálogos são trepidantes porque, na realidade, eles não se calam (tal como atestado nas visitas que nos fazem por altura da Semana Santa); e em Portugal não existe cinema de terror porque resolvemos os nossos medos a rir (o que é uma estupidez, porque depois o que tem realmente piada é recebido com suspeição). Da mesma forma que se diz que a noite do Porto é sempre uma animação (uma asserção que enerva mais do que orgulha os autóctones), também se dirá aqui – sem pensar duas vezes – que o cinema de terror/suspense espanhol nunca nos deixou ficar mal. E nem vamos lá atrás, a Narciso Ibañez Serrador ou aos zombies cegos de Amando de Ossorio; vamos ao Alejandro Amenábar de Tesis (e, depois, Abre Los Ojos e The Others), ao Aléx de La Iglésia do estonteante El Día de La Bestia (e, já fora do terror, La Comunidad), ao mexicano Guillermo Del Toro, a Jaume Balagueró, Paco Plaza, Mateo Gil, Isidro Ortiz, Juan Antonio Bayona, Nacho Cerdà, Nacho Vigalondo (do estupendo Los Cronocrímenes), Guillem Morales, Elio Quiroga, F. Javier Gutiérrez, Laura Mañá, Rodrigo Cortés e Koldo Serra (perdoai-nos, Senhor, o name-dropping). Secuestrados (Miguel Ángel Vivas, 2010) é um caso curioso porque se demite do «cliché espanhol» para abraçar, sem reservas, um dos maiores lugares-comuns (e estamos no domínio do elogio) do cinema francês de choque e horror: a invasão do lar com consequências ao nível da carne picada. OK, os créditos indicam co-produção entre os dois países que nos estão mais perto por via terrestre, mas um dos pontos de contacto mais oportunos até pode ser, neste caso, o seco Funny Games, apesar de em Secuestrados a violência ser mais óbvia (e, paradoxalmente, menos penosa de testemunhar) do que no filme de Michael Haneke. Para um cheirinho, o resumo do IMDb não deslustra: três criminosos com pronúncia da Europa de Leste irrompem numa casa localizada num condomínio privado em Madrid, fazem dos seus habitantes reféns e obrigam o patriarca a dar uma voltinha de carro para esvaziar os cartões bancários da família. É uma ordem de trabalhos lixada e não há aqui delicadezas. Como também não há artifícios barrocos na forma de Vivas filmar a peripécia, engendrando um tempo-real através de planos-sequência e, lá mais para a frente, dividindo o ecrã em dois (e sobre tecnicidades já fomos demasiado longe). Sobra um interessante exercício de frieza, assente num desancar implacável de inocentes que se esgatanham pela sobrevivência. E sobre o que mais sobra ou deixa de sobrar ficamos por aqui.

quinta-feira, 15 de março de 2012

The Tunnel (2011)

Iscas de fígado podem ser feitas, essencialmente, de duas maneiras: fritas em cebolada ou grelhadas com uma discreta pitada de sal. Por aqui recorre-se ao órgão hepático alheio quando passa da hora de jantar e a alternativa resume-se a conservas de sardinha em molho de tomate. Geralmente, grelha-se porque demora menos – o objectivo de nos entregarmos a este eterno inimigo do consenso (ainda assim, a causar menos repugnância do que o bucho) é, mais do que lambermos os beiços de prazer, não perder o mesmo tempo que uma refeição complicada de confeccionar deverá requerer. Isto é, mata-se a fome porque é preciso. The Tunnel (Carlo Ledesma, 2011) estará para as iscas de fígado como O Labirinto do Fauno para os filetes de polvo com arroz do mesmo. Com o primeiro matamos a fome (de cagaço) num instante, cumpre-se a função sem mais delongas; o segundo é como aquela refeição que nos fica na memória (e a trabalhar no estômago) e não tem propriamente uma finalidade (além de gerar satisfação). The Tunnel é também um descendente de Blair Witch Project, fita «novelty» que nos prendeu a um cadeirão do Monumental em 1999 e que – intencionalmente ou não – nos fez recordar que o medo do escuro pode ser uma coisa muito mais sinistra do que os pedopsiquiatras bonzinhos querem fazer crer. Por aqui, assume-se a fraqueza (ou a disponibilidade ingénua para ser acagaçado): há dias em que acender as luzes ao longo do corredor é boa ideia (especialmente depois da meia noite); e ainda não recuperámos daquela tarde nos labirintos subterrâneos da Quinta da Regaleira em que só flashes constantes da câmara fotográfica nos salvaram do passo em falso. Doze anos depois de Blair Witch, o potencial de medo é discutível e o êxito de um sucedâneo está, sobretudo, dependente das abébias que estamos dispostos a dar. Dar uma hipótese a The Tunnel é aceitar entrar no jogo, é aceitar passar por cima de uma história corriqueira – projecto governamental envolto em suspeitas e equipa de repórter e cameramen que se põe a caminho sem ninguém saber. A carnificina (estavam à espera de quê?) decorre numa rede de antigos túneis de caminhos-de-ferro debaixo da cidade de Sydney, e o espectador, à semelhança do que acontece com Blair Witch Project, não vê muito bem o que acontece (mas fá-lo na perspectiva do infeliz que carrega a maquinaria). Primeiro segue-se em frente, depois chega a altura de fugir. Primeiro o optimismo, depois o arrependimento. É como comer fígado ao jantar.

segunda-feira, 12 de março de 2012

The Stepfather (1987)

Gostava de discorrer sobre 1987 como se lá tivesse estado – e estive, provavelmente a comer caldeirada de petingas em casa da minha avó paterna. Sobre 1986, terei sempre o Mundial de Futebol do México e uma caderneta de cromos da Panini que não me deixa mentir; em 1988 houve o Europeu e a Holanda e o Van Basten. Mas 1987 é um buraco na minha memória; tenho a certeza de que andei por lá, de calções no Verão e Kispo no Inverno, mas apenas isso. Serve este intróito para apresentar a temática do «estive lá e trouxe esta cicatriz no joelho» vs «estive lá porque me contaram» (ou «estive lá porque li na internet»). E para deixar claro, antes de mais, que não vi The Stepfather no ano em que se estreou no cinema, nem no que veio a seguir, nem sequer vinte anos depois. Tê-lo-ei visto com idade suficiente para exclamar, aos primeiros minutos, «espera lá, mas isto é o Locke do Lost com cabelo!». The Stepfather (Joseph Ruben, 1987) tem como protagonista Terry O’Quinn, o actor que viria a tornar-se mundialmente famoso através da série que desalojou o Championship Manager do trono dos meus hábitos compulsivos. Vê-lo aqui, no final dos anos 80, sem a t-shirt transpirada, nem cabelo rapado e isento de convicções metafísicas é uma surpresa. E não adianta lembrar-me, a todo o momento, que este ainda não era o Locke do Lost; o próprio Lost mostrou-nos que confiar na linearidade do tempo é um logro. Este Locke do passado é – fica desde logo claro – um assassino em série sempre pronto para outra. Para trás, uma família dizimada; na bagagem, o estritamente essencial para recomeçar vida nova. Falar aqui de vida é relevante: Henry (o nome que resolveram dar ao nosso Locke) quer ter uma, pelo menos durante algum tempo. É um serial killer familiar: infiltra-se num agregado sem marido/pai, seduz a mãe, tenta comprar o/a filho/a com oferendas, acabará por limpar o sebo a todos quando estiver com a mosca. Aqui vemo-lo um ano depois da última «limpeza», a fingir ser um mediador imobiliário chamado Jerry Blake, casado com Susan Maine (viúva) e padrasto de Stephanie, adolescente com a sua dose de neura. Como seria de esperar, a mãezinha cai no engodo; a filhota nem tanto. A história de The Stepfather é a história de um vilão a retirar, progressivamente, a maquilhagem; de um anjo da guarda a transformar-se num matador obstinado; de um projecto de pai a transformar-se num filho da mãe. Locke (ou Terry O’Quinn) convence-nos: também em Lost o vimos, extremoso, a construir um berço para o filho de Claire para, a seguir, fazer ver a Jack que o protagonista da série não tem que ser o salva-vidas. A persistência jogou a favor dele: sabemos que dois anos depois lambeu as feridas, deu de frosques de um hospital psiquiátrico e voltou ao activo (eis-nos perante The Stepfather II). É mesmo à Locke.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Happy Birthday To Me (1981)

Bastaria o poster para que Happy Birthday To Me merecesse lugar cativo por estes lados, mas este slasher de 1981 tem predicados suficientes para saciar a fome (que não de kebab) dos acólitos do cagaço. E parte, diga-se, de um dos motes mais descabidos (e, já que falamos do que falamos, também mais a propósito) do género. Dado a incisões com arma ferrugenta, arapucas medievais e quejandos, o slasher tem – na sua infinita capacidade de reinventar a morte tragicómica – um sentimento de culpa incrustado: precisa de um pretexto para justificar a mortandade. A mera existência de um tipo baralhado que começa a aviar carcaças não chega; é necessário mostrar por que é que a figura (normalmente mascarada) existe e está enamorada com a sua gama de recursos para extinguir o próximo. Em busca da tal ética, o slasher vai ao calendário e põe a malta a avariar em feriados e dias especiais: temos, então, a noite das bruxas em Halloween; a aziaga sexta-feira dia 13 em…err… Sexta-feira 13; o dia das mentiras em April Fool’s Day; o Natal em Black Christmas; o dia dos namorados em My Bloody Valentine. Mas como os dias especiais são limitados, não é de desaproveitar o charme discreto de uma certa jornada móvel, fixa na vida de cada um de nós (se tudo tiver corrido bem), mas variável de ser vivo para ser vivo: o dia de anos. A razão pela qual até somos tentados a compreender um infeliz com a roupa manchada de sangue e machado na mão prende-se com a pura necessidade de obtermos uma autorização para testemunhar uma série de crimes a brincar (é cinema, amigos). «Ele é assim porque, caramba, não se aguenta quando o dia a seguir ao 12 calha numa véspera de fim-de-semana; ele é assim porque é dia das mentiras, pá, tem direito a pregar umas quantas partidas e a diminuir a densidade populacional da sua comunidade; ele é assim porque o Pai Natal nunca lhe deu uma metralhadora de brincar; ele é assim porque não aguenta jantar sozinho no dia dos namorados». Realizador inglês (J. Lee Thompson, nascido quatro anos depois da minha avó que viveu mais) a filmar no Canadá dá a Happy Birthday To Me uma aura de culto, mesmo que o tal pretexto seja o mais fácil (alguém faz anos, ena, que bom). Somos apresentados a Ginny (Melissa Sue Anderson, uma das petizes de Uma Casa Na Pradaria), rapariga popular num liceu privado e membro de uma elite composta por alguns dos adolescentes mais abastados (e obnóxios) da escola. Ginny é gira, mas tem sequelas de um acidente perturbante sucedido no ano anterior. Ginny vai fazer anos. Os amigos de Ginny começam a morrer. Não vamos, obviamente, mais longe neste inventário de ocorrências, mas em benefício de Happy Birthday To Me não só há um prazer pelo macabro (e nesse reduto estamos bem servidos), como uma intenção bem concretizada de firmar um clássico, com inflexões que mais facilmente associaríamos ao meta-slasher dos anos 90, ao próprio género a reflectir sobre si próprio. Diríamos, se quiséssemos embrulhar isto com um perfume para oferecer, que «está à frente do seu tempo». Mas vamos rematar a coisa com um tímido «parabéns a você». É o que se diz, não é?

quarta-feira, 7 de março de 2012

Confessions / Kokuhaku (2010)

Que a vingança é um assunto assaz querido à cinematografia de terror oriental (dois países à cabeça: Japão e Coreia do Sul), qualquer domingueiro do cagaço já terá percebido – ou isso ou então temos tido uma pontaria desgraçada desde que, mais ou menos a meio da década passada, passámos a enfardar traulitada proveniente destes vizinhos banhados pelo Mar do Japão. A vingança no cinema destes países é uma instituição e tanto pode ser apanágio de seres que respiram o mesmo ar do que nós (e que se querem vingar de quem lhes riscou o carro), como de almas penadas que, no seu tempo de vida, foram atazanadas sem piedade por aqueles que agora serão perseguidos. Complicado? Muito menos do que decorar os nomes deles. Estar vivo é, aqui, o contrário de estar morto, como diria certa sumidade do reumatismo nacional – e é também o pormenor que permite saber quem é o protagonista (ou através de que ponto de vista vamos conhecer a história). Se estiver vivo, seguiremos os passos da personagem que andar à procura de quem lhe fez a vida negra, torceremos por ela e vamos dizer-lhe para se manter afastada de objectos cortantes ou ampolas com ácidos marados; se estiver morto, aparecerá ocasionalmente em flashes aterrorizadores, mas deixará o melhor (é como quem diz) do filme para o infeliz que descobrir aos poucos por que razão apareceu agora um fantasminha que lhe quer morder os calos (normalmente por causa de um azar na escola que acabou com alguém a ir desta para melhor). Variações criativas desta matriz correram bem ao sul-coreano Park Chan-wook, autor da trilogia sagrada do ajuste de contas, Sympathy for Mr. Vengeance (2002), Oldboy (2003) e Lady Vengeance (2005). Louvar a criatividade é dupla parabenização: há bom cinema, não haja dúvidas, mas também há um leque multifacetado de recursos à disposição de quem pretende (e ó se pretende) infligir dor no outro. Há uma abordagem profana do terror barroco: não é chegar, mocada no cachaço e tenho onde estar às duas e meia; pelo contrário, segue-se uma receita, um itinerário macabro, um roteiro minucioso com uma tendência inevitável para acabar em mal (atente-se que estamos a falar do cinema que nos ensinou a retirar um rim sem precisar de mandar o resto do corpo para o galheiro). Confessions (ou Kokuhaku, do japonês Tetsuya Nakashima) investe na temática da vingança, transportando-a para a sala de aula de uma escola secundária (vem-nos à memória a saga sul-coreana Whispering Corridors). Vemos alunos excitados e uma professora surpreendentemente calma. Ela conta a sua história: a vida corria-lhe bem até ao dia em que a filha aparece morta, afogada numa piscina. Pelas palavras da professora (e mãe), percebemos que a tragédia não é acidental e os presumíveis responsáveis – dois alunos – estão ali mesmo, na sala de aulas, à sua frente. A certa altura, julgamos que há um filme por acontecer, que o preâmbulo está feito e daí partiremos para a trivial reconstituição dos acontecimentos. Sim, tudo isto é verdade mas nunca se sai da narração na primeira pessoa: a vingança (porque há uma, claro) é desenrolada como um novelo, entrelaçando-se as linhas apenas para que tiremos o pulso à dimensão das outras personagens. Como em outros casos vizinhos, há um hiper-terror a que temos de nos adaptar – a vingança, para estes amigos do cagaço, não é um jogo de chinquilho que se adia porque está a chover; é coisa para picar o miolo. Damos por nós a pensar que «já chega, deixa lá isso», mas não nos é oferecido consolo em troca nem uma ténue esperança de escapatória. Esta vingança não é para meninos e mesmo nós já olhámos para trás para ver se vem gente.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Lake Placid (1999)

Fazer amigos entre os animais. Quem, como eu, tiver mais de 125 anos, lembrar-se-á de onde vem este slogan. Era do concurso Arca de Noé, apresentado por Fialho Gouveia nos anos 80, tempos em que a RTP corria sozinho pela atenção das bandas VHF e UHF dos televisores Grundig. Por aqui, gosta-se de animais e há um gato ali a roncar no sofá que não nos deixa mentir. Mas no que toca ao cinema do cagaço, não há como não duvidar da bicharada. Nem vou falar – por cagufa, claro – do irascível cão nazi (White Dog) ou sequer recordar a macaca psicótica que tramou a vida de um cidadão paraplégico (Monkey Shines), muito menos a gataria nefasta do cinema do oriente (aranhas e cobras não valem; já não são boa rês na vida real). Repare-se que nos exemplos anteriores precisámos de rebuscar adjectivos, algo que se torna inútil quando os nossos vilões são – vamos ao que interessa – crocodilos. No cinema de terror, um cão precisa de ser treinado para ser bandido, um macaco só podia mesmo estar com a medicação trocada para ter feito o que fez; crocodilos, por sua vez, estão a ser apenas crocodilos. Nada contra o corpulento (e, dizem os documentários sobre vida animal, algo limitado intelectualmente) animal residente em lagos e pântanos por esse mundo fora. Temos até alguma simpatia por aligátores que insistem em esconder-se atrás de guarda-fatos de moradias na Flórida – querer fazer xixi fora de água é um avanço civilizacional que o aligátor reclama há séculos, não obstante a indiferença do humano. Mas há que reconhecer que filmes com crocodilos vão todos dar ao mesmo, ou – no máximo – a dois desenlaces possíveis: o triunfo da besta sobre o cidadão incauto, ou uma carrada de postas de carne de crocodilo a espalhar-se, em câmara lenta, sobre a superfície de águas turvas. Talvez por isso, confundo quase todos os filmes de terror com crocodilos e a prova é que queria falar-vos de Lake Placid (1999, de Steve Miner, realizador das partes 2 e 3 de Sexta-Feira 13) e, até há minutos, estava a pensar na história do Rogue (2007, de Greg Mclean). Desfeitas as dúvidas (o truque foi pensar em qual entraria Bridget Fonda), chegamos a Lake Placid, terreola perdida na América profunda onde, evidentemente, um lago com o mesmo nome é o centro das atenções. Nele, reside uma criatura gigante com apetite voraz por carne humana que se torna um «case study» de várias partes concorrentes: há o xerife local (Bill Pullman), sujeito habituado a resolver as coisas à sua maneira; uma paleontóloga (Bridget Fonda) da cidade grande que para ali é enviada para «esquecer» um desaire amoroso, e um curioso dos crocodilos (Oliver Platt) com uma agenda própria (e um modus operandi temerário). O que surpreende (mas também desmotiva) em Lake Placid, por oposição a quase todos os outros filmes com o qual o confundimos, é uma toada humorística algo recorrente na cinematografia do cagaço dos anos 90, habitualmente tida como reacção apaziguadora aos pretensos excessos da década anterior (discordamos: adoramos a rebaldaria dos anos 80). É possível misturar terror com humor, mas o equilíbrio é dinamitado quando, pelo meio, se metem crocodilos, uma parelha que anda às turras (Pullman e Fonda) e até uma das velhotas do Sarilhos Com Elas (Betty White): vai-se o medo todo pelo ralo e ficamos com um filme de aventuras em que, mais do que querermos saber se o crocodilo é ou não pré-histórico e nos vai mastigar a todos, nos deixamos entrelaçar pelos movimentos de repulsa e atracção dos protagonistas (será que eles se vão beijar, será que ele vai salvá-la num momento de aflição, será que no fim ela volta para o amor antigo, em Nova Iorque?). Ou seja, contratámos um filme de terror e entregaram-nos uma pizza com extra-queijo. Comemo-la, claro, mas ficou a pesar no estômago (a nós e ao crocodilo).

sexta-feira, 2 de março de 2012

The Happening (2008)

Isto do cagaço não é dado a lamechices, mas abro uma excepção para assumir o meu carinho por filmes com a premissa «o mundo vai acabar, só cá estou eu e meia dúzia de labregos, mas isto há-de se arranjar» (também tenho um carinho por filmes com a premissa «featuring Zooey Deschanel», mas já lá vamos). Não interessa a causa – guerra biológica, condições meteorológicas adversas, invasão de marcianos, criaturas malvadas criadas em laboratório, batalhão de mortos-vivos na fila para tirar o passe, coisas a cair do céu ou contágio por via indistinta –, também não interessa se estamos em 1977 ou em 2041. A ideia que cativa é puramente anímica: alguém vai ter de fazer pela vida. Normalmente, nestes filmes decido saltar para o lado de lá do grande ecrã, qual Jeff Daniels n’A Rosa Púrpura do Cairo (ou o Rui Tolo, quando íamos todos ao cinema na Escola Primária) e lá vou eu de metralhadora às costas, vara de pau na mão ou biqueira de aço – é aqui que se vê quem tem coragem e quem se encolhe à primeira picada de mosquito. A meu lado, naturalmente, rapariga bem apessoada, algo vulnerável, mas firme e decidida na altura certa (ou naquela parte em que eu estou com um camafeu preso ao pescoço e é preciso resolver o assunto). Faça chuva ou faça sol (e, nestes filmes, o sol queima), é certo que há um grupo que se mete à estrada (ou fica retido num empreendimento qualquer) e vai servindo cacetada (ou apanhando com detritos em cima) à medida que a cidade – há sempre uma cidade – vai ficando inabitável e a nossa demanda de um lugar para estar (um sofazito que seja, pá) se vai tornando cada vez mais difícil de concretizar. Nestes filmes, as saudades do antigamente (como naquela música dos Specials que diz que a vida era farta antes de a cidade ter virado fantasma), dos tempos em que se podia sair à rua para fazer o Totobola, são impressionantes – especialmente se tivermos em conta de que no dia anterior estava tudo bem e ninguém sentia a falta de coisa nenhuma. Isto acontece porque todos os sentimentos são ampliados – como nas relações amorosas via internet :)))))**** –, porque tudo é vivido com aquela nervosidade de poder ser a última vez que damos corda ao relógio. Ou que vemos aquele tipo estranho que se juntou ao nosso grupo e que desconfiamos que vai lerpar de forma estúpida. Ou que fitamos os olhos de Zooey Deschanel – dois, azulões, tipo desenho animado japonês – só mais uma vez. E é ela que nos leva a O Acontecimento (The Happening na versão original), de M. Night Shyamalan, aquele filme em que Mark Wahlberg passa o tempo todo com a cara de «estou para ir à casa de banho desde as 10 da manhã, mas levaram-me o jornal» e Zooey com olhos de Deschanel. Passámos este tempo todo a inventariar os requisitos do bom filme de sobrevivência. O Acontecimento, por sua vez, é tão pouco convincente que merece que lhe dediquemos apenas mais uma linha.
Esta.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Kill List (2011)

Quando o cinema de terror quer reflectir sobre si mesmo, faz-se um filme em que há uma personagem meio freak que conhece os códigos e as manhas do género, em 75% dos casos trabalha num videoclube (R.I.P.), cita exemplos obscuros com pinta de connoisseur (eu atiro o Xtro para o ar e, nota mental, acho que vou mesmo acabar por vê-lo), vai analisando tudo o que mexe (especialmente se forem cómodas de mogno com bicho-carpinteiro), fala em torrentes nervosas como um jovem Woody Allen a braços com uma praga de traças, e, para os pontos retro extra (mas também para chegar a toda a gente), exibe um poster do Massacre no Texas ou do Sexta-Feira 13 (os originais) na parede do quarto. Apesar de ter um pentagrama que brilha no escuro e uma primeira edição autografada do Livro dos Mortos, esta personagem-fã modelo costuma ser um caguincha quando é a doer, mas está ali para mostrar que o realizador sabe que nós sabemos que ele sabe da poda (ok, eu páro com isto). Não desgosto desta auto-reflexão e acho benéfico que o cinema de terror faça terapia. Infelizmente, tirei um curso parecido com comunicação social – as minhas estratégias de convencimento pararam na psicologia invertida (mesmo assim troco-me todo) e, para acabar de vez com o romantismo, quando quero reflectir sobre o cinema de terror, abro um ficheiro Excel onde tenho a filmalhada toda desde que comecei a «dar nisto». É útil especialmente para evitar comprar o mesmo filme duas vezes naqueles surtos nocturnos na secção «é quase dado» dos sites de venda online do costume. Mas também para ver coisas tão inúteis como quantos filmes uruguaios assisti no ano passado (1), qual o ano da década de 70 mais contemplado (1978), ou a nota mais baixa no IMDb (é um 2.5 e por aqui me fico). Todo este preâmbulo para vos dizer que quando tropecei no título Kill List (Ben Wheatley, 2011, Reino Unido, 6.2 no IMDb, segundo o meu estimado cagaço_e_outros.xls) concluí, com propriedade, que já não via um filme com «List» no título desde a A Lista de Schindler – é triste, mas é nisto que um agarrado (ao cagaço e à cerveja belga) pensa. Como ocupei a cabeça com entulho, atirei-me a Kill List sem a repérage aconselhável e – fatalidade – não encontrei propriamente uma lista de supermercado. Britânico – e a notar-se por todas as costuras – Kill List é daqueles filmes que não conseguimos mandar abaixo, não obstante as atrocidades cometidas sobre terceiros, os cerebelos esfrangalhados, a cacetada em ossos doridos, o rebentamento de órgãos vitais a partir do exterior. Jay (Neil Maskell) é um marido instável e um pai falhado. Como se não bastasse, é um mercenário frio, eficaz e despachado, que não pensa duas vezes antes de esmigalhar a mioleira alheia. Às suas mãos (e de um compincha) chega uma nova missão: aviar sem soluços uma catrefada de cidadãos de reputação duvidosa. Jay não vacila, mesmo quando as vítimas se põem a esgatanhar pela vida. Até que... O filme decide-se, obviamente, nesse abanão maroto que a decência manda aqui omitir. Ben Wheatley, rapaz com experiência em televisão, não é panorâmico nem metafísico; vai directo ao osso (literalmente) e sabe que não tem mais de hora e meia para fazer a festa (isto é um elogio) e usar todo o conteúdo da caixa de ferramentas. Como somos gente dada a gratuitidades, não perguntamos porquê. Até porque ele não nos vai responder. Mas gostamos, vamos ao Excel e anotamos: «dizer bem».