Diz a história recente do cinema de terror que depois do «esgotamento» do filme slasher, a meio dos anos 80, o cagaço na tela passou a ser discreto, tímido e envergonhado, só se recuperando com o comic relief de Scream a meio da década seguinte. Várias teses se levantam para este deserto de praticamente dez anos, mas gostamos desta: o espírito doidivanas do filme slasher, sempre afoito à catanada, inalação de charro e exibição despudorada de maminhas ao léu, levou a sua própria machadada quando o mundo lá fora começou a ficar sério. Divertimento de pipoca na boca não deveria misturar-se com questões então prementes como a fome na Etiópia ou, tocando no busílis, o descontrolo da epidemia da sida (a meio dos anos 80 já não apenas um «exclusivo» das saunas de São Francisco). Mas a verdade é que tudo isto fez mossa – e não só no lado americano; também no Reino Unido, em vigência Thatcher, se criou um índex para videoclubes (precavendo a juventude contra os chamados video nasties). Apontava-se, então, uma ligação entre a leviandade do cinema de terror e a decadência moral da sociedade. Depois vieram os videojogos e a culpa passou a ser repartida. Na altura em que escrevemos estas linhas, desconhecemos o desfecho do caso Pistorius, mas suspeitamos que a nova Playstation não se vai poupar em first person shooters. E acreditamos numa coisa: não foi só o «pecado» a fazer desaparecer a cinematografia de terror (da mesma forma que a sífilis não refreou a produção de filmes pornográficos); houve também uma decadência natural motivada pela redundância de uma fórmula que era novidade em 1980, mas que já tinha decepado todos os crash test dummies um par de anos depois. No final dos anos 90, The Blair Witch Project fazia outra coisa: criava condições para o cagaço sem a carga meta-referencial que fez de Scream um filme de miúfa amorosa, daqueles em que o susto se auto-celebra. No boom da internet, gravações em VHS eram já vestígio de outros tempos – e tudo o que é obsoleto, de bonecas de louça a um relógio de cuco, tem condições para fomentar a mais genuína cagufa. Este apelo do vídeo amador, do falso real, do «poderia ter acontecido consigo» sustentou (e ainda sustenta, veja-se a saga Paranormal Activity) bilheteiras em tempo de carestia. Sinister, exibido o ano passado, envereda pelo mesmo filão mas tem outro requinte, até por recuperar o tabu dos filmes snuff. Vemos imagens em Super 8 de uma família de quatro pendurada numa árvore, com capuzes enfiados nas cabeças e cordas à volta dos pescoços. Algum tempo depois, Ellison Oswalt (Ethan Hawke) – escritor de livros baseados em crimes reais – muda-se para a casa da família assassinada com mulher e dois filhos. De início, os entes queridos desconhecem que foi no quintal das traseiras que tudo se passou. A tensão é ultrapassada pela paciência da mãe e, sobretudo, pela confiança que, inicialmente, Ellison mostra na sua investigação. Mas este é daqueles casos em que, a cada desenrolar do novelo, a clarividência do protagonista se vai degradando ao ponto de Ellison ser, a certa altura, escravo do «monstro» que criou, atiçado por um projector e uma série de fitas de 8 milímetros encontradas no sótão onde se vêem etiquetadas datas distintas (1966, 86, 79, 98, 2011) e situações também diferentes (traduções livres: «Durante o sono», «Churrasco», «Festa na piscina», «Ceifeira debulhadora» e «Família pendurada»). Sinister – melhor elogio será difícil – faz jus ao título. Ethan Hawke exagera, aqui e ali, nos esgares de «estou a ficar avariado da caixa dos pirolitos», mas ao cabo de 110 minutos não só já mordemos o lábio uma série de vezes como nos colocamos, paulatinamente, as interrogações da ordem – como nos melhores filmes do género. No fim, o desconforto. Sinistro, funesto, próprio de um cagaço de boa colheita.
(publicado originalmente na edição de Março de 2012 da revista Loud!)
Em 2008, Chipre e Malta aderiram ao Euro (a culpa não é nossa!), o preço do petróleo começou a inchar, Fidel Castro deixou a presidência de Cuba, a queda de um avião matou 71 na China e um ciclone ceifou milhares de vidas na antiga Birmânia – tudo isto no primeiro semestre. Porém, nada nos perturbou tanto como Martyrs, segunda longa-metragem do francês Pascal Laugier, que quatro anos antes não nos assustara muito com Saint Ange, assombração em orfanato. Mas Martyrs, estreado em Maio daquele ano, era de outra cepa e, provavelmente, pelo título «cagão» lá fomos nós sem sobreaviso. Não demorámos muito a perceber que estávamos a brincar com fogo; a entrada de rompante obrigou-nos a carregar em pausa, a respirar fundo, a rebuscar um Victan no fundo da gaveta da medicação. 94 minutos depois não estávamos melhor, ressalve-se. Mas o Victan, se usado com fins legítimos (isto é, uma vez sem exemplo) dá sono e a agrura do mundo lá fora «bate» menos. Infelizmente, o meu LCD Samsung não é o mundo lá fora – é uma espécie de Poltergeist que já acagaçou duas ou três poltronas (todos os dias encontro uma uns centímetros mais distante do móvel do Ikea e já não foi uma nem duas vezes que o maple se escapuliu pela varanda). Aos primeiros minutos, um drama daqueles: vemos a pequena Lucie a escapar de um matadouro pestilento, onde esteve aprisionada e sujeita às piores atrocidades uma boa carrada de tempo (contudo, sem danos sexuais). Sem que os malfeitores sejam identificados, a pequenita é remetida a um orfanato. É nesta rígida instituição de acolhimento que conhece outra petiz, Anna. Tornam-se inseparáveis e, entretanto, Anna descobre que Lucie se vê atormentada por uma desfigurada criatura diabólica. Traumas de infância, quem os não tem? Pascal Laugier, matreiro, avança a narrativa quinze anos. Lucie (a actriz Mylène Jampanoï) entra por uma casa adentro e dispara até não deixar pacote de leite por abrir. Depois vemo-la a telefonar à velha amiga Anna (Morjana Alaoui) dando conta de que já limpou o sarampo aos responsáveis pela sua miserável infância encarcerada e precisa de ajuda para enterrar os corpos. É mais ou menos por aqui que tudo o que dissermos poderá tornar-se o que qualquer site avisa com asteriscos e a palavra em inglês spoiler. Mas não será despiciendo asseverar que a história leva uma volta das grandes, não demorando a responder à nossa impaciente pergunta: «então Pascal, já aviaste meia dúzia em meia hora, o que é que vais fazer no resto do filme?». Às duas por três, Anna (repare-se que deixámos de falar de Lucie, porque será?) trava conhecimento com uma senhora que se apresenta apenas como Mademoiselle e é aqui que o degredo começa. Mademoiselle diz fazer parte de uma sociedade secreta que procura descobrir o mistério da vida depois da morte através da criação do que denominam de «mártires». Ora, mártires não é coisa para qualquer um; e para se ser um, ou seja, para se documentar – de acordo com a teoria macabra da pandilha de Mademoiselle – a vida depois da chegada da ceifeira é preciso ficar-se suspenso «por pinças» entre a existência tortuosa e o, digamos, falecimento. Os mártires ficam, por assim dizer, ali à espera. Num estado que não descreveremos por decoro. Privados de tudo, à espera dessa luz, desse esclarecimento que demora a vir (acreditamos em Mademoiselle?). Um terço de Martyrs é brutal, aflitivo; os restantes dois terços são agoniantes, absurdos, terríveis. Parecendo gratuito na sua oferta, Laugier é – conceda-se – fiel à premissa: ser mártir não é pêra doce, vamos lá ver se Anna se aguenta à bronca. E nós aqui a ver, rabinho a tremer em poltrona igualmente temerosa, olhos em fogo, dois dedos bem metidos na garganta à espera do fim. E que fim...
(publicado originalmente na edição de Fevereiro de 2012 da revista Loud!)