Já não sei se o escrevi nesta página ou se o terei vociferado, com entusiasmo de bebedice, numa qualquer taberna deste sinistro Portugal, mas tenho aqui uma costela (ou um entrecosto inteiro) de carniceiro no que à filmografia do cagaço diz respeito. Atente-se que qualquer desafio psicológico me causa mais arrepios do que uma peça do lombo trespassada por perícia de talhante, mas talvez precisamente por isso – por não exigir mais do que um neurónio em modo de poupança –, o filme slasher é recurso costumeiro lá por casa. Derreados após um dia de labor, uns apegam-se às novelas; por aqui desanuvia-se a ver um vilão normalmente incógnito a aplicar certeiros golpes de catana (e restante arsenal da caixa de ferramentas). Com folha de serviços apetrechada até meio dos anos 1980 (a partir do qual começa a perder poder de choque), o filme slasher deu emprego a beldades de olhinho azul, mas também a zarolhos; a rapagões atléticos e outros atarracados; a raparigas espampanantes e escroques absolutos; a actores de primeira apanha e a transeuntes chamados a cena à última hora – pese a rigidez formulaica, não há cinema mais despreconceituoso, ousamos dizer. Chegados a The Slumber Party Massacre, de 1982, não demoramos a ver raparigas de «high school» (ou seja, actrizes de vinte e muitos) a banharem-se, languidamente, no balneário do pavilhão gimnodesportivo e, às duas por três, já há rapaziada a gabar a qualidade da erva. Ah, a grata sensação de estarmos em casa. Não vem muito ao caso, mas também há um enredo: Trish, adolescente, decide dar uma festa do pijama enquanto os paizinhos vão dar uma volta. Nesse mesmo dia, um assassino em série escapa da cadeia e, munido de um berbequim, começa a fazer miséria na escola secundária local, começando por eliminar do elenco uma «mulher das obras» (inversão da matriz machista do slasher? – já lá vamos), ficando-lhe com a carrinha e usando-a como «base de operações». Para a festarola são convidadas Kim, Jackie, Diane e Valerie, colegas de Trish na equipa de basquetebol. Mas Valerie (a trágica Robin Stille, que se encharcaria em álcool ao longo da idade adulta e desistiria de viver em 1996, na casa dos trinta) ouve o que não quer e decide ficar em casa a tomar conta da irmã mais nova. O vilão vai fazendo o que é da praxe nestes filmes, nomeadamente limpando o sarampo a opositores masculinos e estreitando o seu raio de acção. E a partir de certa altura – entenda-se: na escuridão da noite – tudo se passa entre a casa onde Trish recebe as amigas do peito (ahem…) e, do outro lado da rua, a vivenda de Valerie e da irmã, uma inconveniente e curiosa adolescente que faz da sua leitura de eleição a revista Playgirl. O que se passa a seguir não é inédito e o leitor não se sentirá defraudado (mas ainda está a tempo de voltar para trás) se dissermos que o contador de baixas vai apresentando números progressivamente mais altos. Lentamente, o nosso segundo neurónio começa a apitar: há por aqui um subtexto feminista que é novidade neste cinema «testosterónico». Há uma realizadora (Amy Holden Jones) e uma argumentista (Rita Mae Brown). Para o fim (perdoem-me a inconfidência) não fica um casal. Os rapazes não levam a sua avante no que diz respeito à consumação das suas, digamos, intenções. Há uma «mulher das obras» e uma treinadora de basquetebol (e não um lambareiro «coach» a olhar para os calções das moças). E, tirando a esguia e charmosa Val (que, como vimos, ficou de fora da festa), as raparigas não são propriamente umas brasas. Um terceiro neurónio (outra novidade!) incute-nos simpatia assinalável por um filme capaz de, na sua alarve matança, inverter boa parte dos estereótipos do estilo sem que sintamos que estamos perante um objecto vindo de outro mundo. Gostamos de ver rabos e mamas, sim senhor, mas também defendemos o «girl power». As contradições ficam para outra altura.
(publicado originalmente na edição de Junho de 2012 da revista Loud!)