Buried (2010)
Sobre o corpo tremeliquento, um uniforme descartável vagamente assemelhado à «farda» de uma sexagenária a caminho da mercearia. Os pés gelados, um nó na garganta, uma ligeira – mas muito ligeira – percepção cómica do ridículo: encontro-me num cubículo parecido com uma cabine de provas da Zara, mas sem um espelho para pôr a vaidade em dia. Dois cabides, um banco corrido, a porta semi-aberta e eu para aqui deixado, encolhido, numa espécie de tempo suspenso, com um ontem bem distante e um amanhã que nunca mais chega. Basta de poesia: estou há quinze minutos à espera de um batalhão de batas brancas.
É mais ou menos por esta altura que costumo abrir os olhos, respirar de alívio, levantar-me para mais um dia a virar frangos. Mas hoje não há beliscão que me devolva ao conforto do colchão. Sou chamado por uma operacional dois palmos mais alta do que eu. Tem o cabelo apanhado atrás, uma placa que diz «Patrícia», e fala por monossílabos – ok, é um filme português; até porque se fosse francês, não usaria sutiã. Sou conduzido a uma porta mais adiante. Estou agora numa sala climatizada, com um vidro a separar-me de uma espécie de régie. «Deite-se na marquesa, isto dura 20 a 30 minutos, vai ouvir sons muito ruidosos, até já», diz-me um pequenote (de bata branca, claro). Ai Jesus que lá vou eu.
Queira o estimado leitor saber que isto não é a sinopse da minha primeira longa-metragem, mas sim o relato acagaçado da minha primeira ressonância magnética. E se há epifanias que fazem mudar, por completo, a nossa relação com o mundo, esta situação – estando longe de ser fabulosa – fez, pelo menos, com que mudasse a minha relação com o medo (que não me assistia, como se usa dizer agora) de dar por mim acordado, fresco como uma alface, mas sete palcos abaixo do chão que piso todos os dias.
Remetido ao interior de uma urna, sem escapatória, e na companhia de uma banda-sonora infernal que não desejo ao maior acólito de Skrillex, ponho em causa pela primeira vez a minha mais firme convicção de que enterrado vivo não irei desta para melhor. Por dolorosos 20 a 30 minutos, sinto-me como o Ryan Reynolds no Buried (Rodrigo Cortés, 2010), mas sem telemóvel, isqueiro, ou um cutelo afiado.
E ali dentro, apesar de mais arejado do que Reynolds, foi nele e no seu fado que pensei. Abandonado à sua sorte num caixão exíguo, claustrofóbico, e com uma gama de recursos à qual só Angus McGyver conseguiria dar sentido, Reynolds é Paul Conroy, civil norte-americano no Iraque, condutor de pesados sequestrado por malfeitores e com o oxigénio a conta-gotas. Depois de algum impasse – é aceitável que quando acordamos num caixão, precisemos de pôr algumas ideias em dia –, o pobre Conroy fica a saber, via telemóvel, que a sua vida vale 5 milhões de dólares e alguém vai ter que se chegar à frente com o vil metal.
O que se segue é outro pesadelo comum a este que vos escreve: ter de fazer telefonemas para resolver coisas. Mas uma coisa é ligar à TV Cabo com a tanga de que preciso da Sport TV por motivos profissionais outra é ter que ligar a serviços de apoio a cliente para, digamos, evitar ter o mesmo fim que muitos dizem ter sido o do cantor Carlos Paião (mito urbano, diga-se).
Estou eu a pensar nessa ironia macabra que é ter de ouvir «aguarde um momento, por favor» ou «entraremos em contacto consigo assim que conseguirmos resolver o problema» quando temos a vida por um fio, e – ao fundo do túnel – deixa-se espreitar a luz do dia. Ou a iluminação artificial da sala climatizada com aquele odor tipicamente hospitalar que agora me parece tão bem-vindo. Tudo menos electrónica à Skrillex. Tudo menos o pânico da morte de olhos abertos. «Tenha cuidado a descer da marquesa», diz-me outro operacional de bata branca. Tenho, sim senhor. E vou pôr-me na alheta. Ao contrário do que dizia a outra, estar vivo não é só o contrário de estar morto. Boa sorte, Paul Conroy. Vê lá se sais daí.
(publicado originalmente na edição de Novembro de 2012 da revista Loud!)
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