Uma nota prévia: fôssemos nós realizadores de cinema e não
hesitaríamos em recrutar Luis Tosar para abominar a vida da nossa delicada
personagem-vítima (e afugentar os energúmenos que sobem as escadas do prédio à
bruta de madrugada). Por isso, há que parabenizar o catalão Jaume Balagueró
pela lembrança; Mientras Duermes é um
«one man show» de Tosar que merece aplauso (e dentes cerrados para não borrar a
cueca). Tosar, que aqui faz de César, porteiro de prédio, fere-nos de morte só
com as sobrancelhas – e convenhamos que o poder de uma (quase) «monocelha» não
deve ser menosprezado. Lembramo-nos dele, Tosar, como o marido violento de Te Doy Mis Ojos (de Icíar Bollaín) e
ocorre-nos que César é essa mesma personagem, anos mais tarde, depois de tudo
ter corrido (ainda) pior. Jaume Balagueró, o homem de Frágiles (com a Ally McBeal, caramba), Los Sin Nombre e Darkness
volta a provar que é quando mais poupa em exteriores que as coisas lhe saem
realmente bem – assim foi também em [REC],
filme-catástrofe passado dentro de um bloco de apartamentos. Este apego ao
terror caseiro começa-lhe, de resto, em Para Entrar a Vivir, uma das seis «películas para no dormir» que a nata do
cagaço castelhano levou à televisão há uns anos. E no terror espanhol, esta
vontade de ficar em casa também já foi amiga de Guillem Morales no excitante El Habitante Incierto com o qual este Mientras Duermes tem vários pontos de
contacto. Tosar (ou César), já vimos, é um sinistro porteiro de prédio a fingir
que é um tipo normal. Ora relativamente apreciado pelos habitantes (mas um
pouco menos pelo senhorio), ora cordialmente ignorado, é um vigilante com
funções alargadas (dá de comer aos cães da velhota, trata das canalizações) e
um amor-próprio abaixo de zero que vai ruminando até transformar em revolta. Vive
sozinho sem grandes pertences; a sua única confidente é a mãe, que está internada
e não consegue falar. Primeiro pensamos que se trata de um tipo avariado, mas
com hipótese de ter um fundo bom; depois percebemos que César é um psicopata
que deseja, a toda a força, tomar posse de uma das habitantes do prédio, a jovem
Clara: simpática, bonita, airosa, disponível, um pouco vulnerável. Para tal,
engendra um esquema que lhe permite – não vamos dizer como – ter acesso ao
reduto mais íntimo da rapariga (a cama) sem que ninguém (nem ela) saiba. Enche-lhe
a casa de bichos (para, depois, colher os louros da desinfestação), infecta-lhe
os cremes e as loções para que a moça desespere como comichões (e assim ter um
motivo para se meter com ela), enfurece-se quando se apercebe que há um outro
homem a disputá-la (com sucesso). A partir daí, como se costuma dizer por aqui,
acontecem coisas. Balagueró consegue o improvável nestas aventuras do terror
pica-miolos: não nos distrai com o que é acessório; vai completamente directo
ao assunto, mostra-nos a abantesma no seu real esplendor. Os nossos olhos não
se distanciam das sobrancelhas medonhas de César, das suas manobras truculentas,
dos seus gestos obsessivos – é o tal «one man show» de que falávamos. O mesmo
«show» que Tilda Swinton, do lado contrário da barricada, dá num certo filme temporalmente vizinho (mas que nós, pategos que somos, não achámos tão bom quanto se diz por aí).
Precisávamos de ter falado sobre César, está mais do que visto.
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