terça-feira, 2 de abril de 2013

Martyrs (2008)

Em 2008, Chipre e Malta aderiram ao Euro (a culpa não é nossa!), o preço do petróleo começou a inchar, Fidel Castro deixou a presidência de Cuba, a queda de um avião matou 71 na China e um ciclone ceifou milhares de vidas na antiga Birmânia – tudo isto no primeiro semestre. Porém, nada nos perturbou tanto como Martyrs, segunda longa-metragem do francês Pascal Laugier, que quatro anos antes não nos assustara muito com Saint Ange, assombração em orfanato. Mas Martyrs, estreado em Maio daquele ano, era de outra cepa e, provavelmente, pelo título «cagão» lá fomos nós sem sobreaviso. Não demorámos muito a perceber que estávamos a brincar com fogo; a entrada de rompante obrigou-nos a carregar em pausa, a respirar fundo, a rebuscar um Victan no fundo da gaveta da medicação. 94 minutos depois não estávamos melhor, ressalve-se. Mas o Victan, se usado com fins legítimos (isto é, uma vez sem exemplo) dá sono e a agrura do mundo lá fora «bate» menos. Infelizmente, o meu LCD Samsung não é o mundo lá fora – é uma espécie de Poltergeist que já acagaçou duas ou três poltronas (todos os dias encontro uma uns centímetros mais distante do móvel do Ikea e já não foi uma nem duas vezes que o maple se escapuliu pela varanda). Aos primeiros minutos, um drama daqueles: vemos a pequena Lucie a escapar de um matadouro pestilento, onde esteve aprisionada e sujeita às piores atrocidades uma boa carrada de tempo (contudo, sem danos sexuais). Sem que os malfeitores sejam identificados, a pequenita é remetida a um orfanato. É nesta rígida instituição de acolhimento que conhece outra petiz, Anna. Tornam-se inseparáveis e, entretanto, Anna descobre que Lucie se vê atormentada por uma desfigurada criatura diabólica. Traumas de infância, quem os não tem? Pascal Laugier, matreiro, avança a narrativa quinze anos. Lucie (a actriz Mylène Jampanoï) entra por uma casa adentro e dispara até não deixar pacote de leite por abrir. Depois vemo-la a telefonar à velha amiga Anna (Morjana Alaoui) dando conta de que já limpou o sarampo aos responsáveis pela sua miserável infância encarcerada e precisa de ajuda para enterrar os corpos. É mais ou menos por aqui que tudo o que dissermos poderá tornar-se o que qualquer site avisa com asteriscos e a palavra em inglês spoiler. Mas não será despiciendo asseverar que a história leva uma volta das grandes, não demorando a responder à nossa impaciente pergunta: «então Pascal, já aviaste meia dúzia em meia hora, o que é que vais fazer no resto do filme?». Às duas por três, Anna (repare-se que deixámos de falar de Lucie, porque será?) trava conhecimento com uma senhora que se apresenta apenas como Mademoiselle e é aqui que o degredo começa. Mademoiselle diz fazer parte de uma sociedade secreta que procura descobrir o mistério da vida depois da morte através da criação do que denominam de «mártires». Ora, mártires não é coisa para qualquer um; e para se ser um, ou seja, para se documentar – de acordo com a teoria macabra da pandilha de Mademoiselle – a vida depois da chegada da ceifeira é preciso ficar-se suspenso «por pinças» entre a existência tortuosa e o, digamos, falecimento. Os mártires ficam, por assim dizer, ali à espera. Num estado que não descreveremos por decoro. Privados de tudo, à espera dessa luz, desse esclarecimento que demora a vir (acreditamos em Mademoiselle?). Um terço de Martyrs é brutal, aflitivo; os restantes dois terços são agoniantes, absurdos, terríveis. Parecendo gratuito na sua oferta, Laugier é – conceda-se – fiel à premissa: ser mártir não é pêra doce, vamos lá ver se Anna se aguenta à bronca. E nós aqui a ver, rabinho a tremer em poltrona igualmente temerosa, olhos em fogo, dois dedos bem metidos na garganta à espera do fim. E que fim...

(publicado originalmente na edição de Fevereiro de 2012 da revista Loud!)

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