terça-feira, 10 de abril de 2012

The Divide (2011)

Era António Guterres chefe do governo quando este que vos escreve enfrentou a sua primeira experiência profissional. Quatro horas por dia no serviço de informações telefónicas da Portugal Telecom – vulgo 118 – parecia, à partida, indolor (e os 70 contos davam jeito). Doze meses depois, sabia de cor os telefones da Maternidade Alfredo da Costa (RIP), da transportadora Luís Simões, do geral da RTP ou das louças Arcopal. Dei contactos do futebolista Oceano, de Júlio Isidro, do escritório do doutor Garcia Pereira, da editora discográfica dos Excesso. Tive de verbalizar localidades como Picha e descobri o telefone do Cardoso do Talho, que «fica aqui ao fim da rua» (a maior parte das vezes «o fim da rua» não era a Andrade Corvo, em Lisboa, mas uma ladeira em Traulitadas de Baixo). Ajudei a comunicar óbitos, a cobrar dívidas, a entregar prémios. Recebi propostas atrevidas de homens e mulheres, de crianças e idosos, com carinho e à bruta. Aprendi a falar devagar e a despachar-me depressa. E a dizer «obrigad' nós». Doze meses depois, tinha um ou dois fusíveis fundidos e uma vida pela frente. Certo, mais uma introdução biográfica e que raio tem isto a ver com um filme do ano em que Pedro Passos Coelho subiu à cadeira do poder? Três palavras: dinâmica de grupo. Então como agora, trabalhar com telefones não exigia um intelecto fervilhante (até é desaconselhável); mas para que o processo de recrutamento decorresse by the book, era preciso prestar provas. Exercícios que ajudassem o empregador a perceber se deste lado não estaria um carniceiro em série (ora aí está um filme por fazer: The Call Center Killer), ainda assim menos anedóticos do que as charadas da recruta militar. Um deles consistia em meter uma fornada de candidatos numa sala fechada para discutir questões como «quem salvaria em caso de catástrofe global: um médico, uma prostituta, uma criança, um pedreiro ou um atleta?». Mais do que uma resposta consistente, interessava observar err… dinâmicas de grupo. Ou seja, como quatro ou cinco marmanjos (e marmanjas) se relacionavam sem desatar à batatada. The Divide (Xavier Gens, 2011) é um desses exercícios, mas em cenário extremo: há uma série de explosões nucleares em Nova Iorque e os residentes de um bloco de apartamentos têm que se refugiar na cave do edifício para melhor protecção do perigo. Só oito conseguem fazê-lo antes de Mickey, o responsável pelo condomínio, selar a porta: um casal de namorados, dois irmãos e um amigo, mãe e filha, e um indivíduo sem filiação óbvia. Mickey toma as rédeas da situação, contrariado. É um antigo militar que faz da cave o seu bunker: tem mantimentos mas hesita em partilhá-los, disponibiliza a contra-gosto uma latrina para as necessidades da malta, manda calar quando a conversa não lhe interessa, recusa qualquer responsabilidade na protecção do coiro alheio. Os restantes defeitos da humanidade distribuem-se pelos outros: o casal está em vias de se separar, a traição é recurso aceitável ao cabo de poucas horas, cortam-se uns dedos a troco de pouco. O problema é que quase duas horas depois está quase tudo na mesma (excepto a saúde mental dos envolvidos, que muda para pior): o mundo lá fora está lixado, o melhor é ficar cá dentro a apodrecer. Xavier Gens quer contar uma história  de luta pela sobrevivência (reflectindo na tela as famigeradas dinâmicas de grupo), mas parece ter mais talento para filmar matança sem piedade (é dele o filme francês Frontières) do que para perscrutar as minhocas que toda a gente tem na cabeça. Ou seja, é mais 112 do que 118.

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