Tenebrae (1982)
Cagaço que se quer cagaço não pode ter um «guia de leitura»: é morder o lábio e esperar pelo papão. Mas ok, sejamos pragmáticos, o cinema tem códigos e um género como o terror dispõe de um «livro de estilo». Fugir enquanto se sobe escadas é morte certa, quem sucumbe aos prazeres do sexo tem pecado escrito na testa e um assassino em série à perna, falar com os mortos não é sarilho se à mão houver uma cartolina, um marcador e um copo. Descrevemos, é certo, clichés do cinema de terror mais formulaico, e não vamos atenuar a tendência ao desvendar o presente objecto desta nossa devoção mensal: Tenebrae, filme de 1982 de Dario Argento, um dos mestres de uma tendência que o mundo conhece como «giallo» e que teve o seu apogeu em telas sanguinolentas sobretudo nos anos 70 do século XX. O «giallo» é o cinema de terror a ir ao médico e a trazer para casa uma receita para ser cumprida à risca: o sangue vai jorrar como se fosse Natal na fábrica da Robbialac; o assassino vai usar luvas, óculos escuros, gabardina e, por vezes, vemos os crimes através dos seus olhos; o manancial de suspeitos é elevado (praticamente, pode ser qualquer um) e não distingue sexo nem idade; no final, percebemos as motivações da matança e concluímos que o perpetrador dos crimes não joga com o baralho todo, apesar de, até ao desenlace, parecer uma pessoa equilibrada e/ou colaborante; há um detective (ou mais) com aquela negligência tipicamente latina e quase sempre um (ou mais) passos atrás da verdade; os protagonistas são actores, escritores, modelos, raramente gente normal com ofícios corriqueiros; braços, pernas ou mãos decepadas parecem, flagrantemente, braços, pernas e mãos decepadas de manequins de montra de loja (mas a gente finge que acredita); há nudez e formas à italiana; a arma do crime é bruta e vulgar (de navalhas da barba a machados de cortar lenha); a banda-sonora é, geralmente, fantástica. Quando Tenebrae chega às telas em 1982, já o «giallo» despachou as suas obras-primas (e uma data de gente inocente) e Dario Argento entregou ao mundo litradas de líquido encarnado, nomeadamente nos estilizados Suspiria e Profondo Rosso. De permeio, Brian de Palma andou nas imediações, mostrando o mesmo apreço de Argento por Hitchcock, o «pai» da dissimulação – e do cagaço, porque não? Mas sendo de 1982 (e isso nota-se num ou noutro penteado), Tenebrae é um filme que respira ainda todos os ares da conspiração e da tensão psicológica dos anos 70, acentuados pela banda-sonora dos inescapáveis Goblin (aqui reduzidos ao terceto Claudio Simonetti/Fabio Pignatelli/Massimo Morante), num registo mais actualizado do que o prog-rock clássico da banda-sonora de Profondo Rosso, e antecipando numa só penada os Daft Punk e os Justice (que samplaram o tema principal em «Phantom», do álbum que tem uma cruz como título). A história, como sempre, é apetitosa. Peter Neal (Anthony Franciosa) é um escritor norte-americano de literatura de terror popular na Europa. Em Itália a promover "Tenebrae", a sua última obra, Neal faz-se acompanhar do seu agente e da sua assistente pessoal. Porém, sem saber, é também seguido pela ex-mulher que, discretamente, o vigia a distância segura. O primeiro crime acontece e Neal recebe uma carta que o informa de que foram os seus livros a inspirar o homicídio. Novos crimes (só mulheres, coitadas) e Neal já não é só um escritor famoso a promover o seu livro; torna-se peça fulcral de um puzzle que a polícia tenta resolver com aquele talento trôpego a que Argento nos habituou. Como sempre, ficamo-nos por aqui para evitar estragar surpresas, mas não evitamos salientar que Tenebrae é «giallo» dos sete costados, exibe pescoços trespassados por lâminas afiadas, fugas trepidantes e – motivo de distinção – um canídeo tresloucado capaz de saltar cercas e vedações como gente grande. Somos sensíveis a pormenores deste calibre: dão-nos cães raivosos e solta-se-nos uma lagrimazita teimosa. É terror de cordel? É, sim senhor. E não queremos nós outra coisa.
(publicado originalmente na edição de Dezembro de 2012 da revista Loud!)
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