Já não sei se o escrevi nesta página ou se o terei vociferado, com entusiasmo de bebedice, numa qualquer taberna deste sinistro Portugal, mas tenho aqui uma costela (ou um entrecosto inteiro) de carniceiro no que à filmografia do cagaço diz respeito. Atente-se que qualquer desafio psicológico me causa mais arrepios do que uma peça do lombo trespassada por perícia de talhante, mas talvez precisamente por isso – por não exigir mais do que um neurónio em modo de poupança –, o filme slasher é recurso costumeiro lá por casa. Derreados após um dia de labor, uns apegam-se às novelas; por aqui desanuvia-se a ver um vilão normalmente incógnito a aplicar certeiros golpes de catana (e restante arsenal da caixa de ferramentas). Com folha de serviços apetrechada até meio dos anos 1980 (a partir do qual começa a perder poder de choque), o filme slasher deu emprego a beldades de olhinho azul, mas também a zarolhos; a rapagões atléticos e outros atarracados; a raparigas espampanantes e escroques absolutos; a actores de primeira apanha e a transeuntes chamados a cena à última hora – pese a rigidez formulaica, não há cinema mais despreconceituoso, ousamos dizer. Chegados a The Slumber Party Massacre, de 1982, não demoramos a ver raparigas de «high school» (ou seja, actrizes de vinte e muitos) a banharem-se, languidamente, no balneário do pavilhão gimnodesportivo e, às duas por três, já há rapaziada a gabar a qualidade da erva. Ah, a grata sensação de estarmos em casa. Não vem muito ao caso, mas também há um enredo: Trish, adolescente, decide dar uma festa do pijama enquanto os paizinhos vão dar uma volta. Nesse mesmo dia, um assassino em série escapa da cadeia e, munido de um berbequim, começa a fazer miséria na escola secundária local, começando por eliminar do elenco uma «mulher das obras» (inversão da matriz machista do slasher? – já lá vamos), ficando-lhe com a carrinha e usando-a como «base de operações». Para a festarola são convidadas Kim, Jackie, Diane e Valerie, colegas de Trish na equipa de basquetebol. Mas Valerie (a trágica Robin Stille, que se encharcaria em álcool ao longo da idade adulta e desistiria de viver em 1996, na casa dos trinta) ouve o que não quer e decide ficar em casa a tomar conta da irmã mais nova. O vilão vai fazendo o que é da praxe nestes filmes, nomeadamente limpando o sarampo a opositores masculinos e estreitando o seu raio de acção. E a partir de certa altura – entenda-se: na escuridão da noite – tudo se passa entre a casa onde Trish recebe as amigas do peito (ahem…) e, do outro lado da rua, a vivenda de Valerie e da irmã, uma inconveniente e curiosa adolescente que faz da sua leitura de eleição a revista Playgirl. O que se passa a seguir não é inédito e o leitor não se sentirá defraudado (mas ainda está a tempo de voltar para trás) se dissermos que o contador de baixas vai apresentando números progressivamente mais altos. Lentamente, o nosso segundo neurónio começa a apitar: há por aqui um subtexto feminista que é novidade neste cinema «testosterónico». Há uma realizadora (Amy Holden Jones) e uma argumentista (Rita Mae Brown). Para o fim (perdoem-me a inconfidência) não fica um casal. Os rapazes não levam a sua avante no que diz respeito à consumação das suas, digamos, intenções. Há uma «mulher das obras» e uma treinadora de basquetebol (e não um lambareiro «coach» a olhar para os calções das moças). E, tirando a esguia e charmosa Val (que, como vimos, ficou de fora da festa), as raparigas não são propriamente umas brasas. Um terceiro neurónio (outra novidade!) incute-nos simpatia assinalável por um filme capaz de, na sua alarve matança, inverter boa parte dos estereótipos do estilo sem que sintamos que estamos perante um objecto vindo de outro mundo. Gostamos de ver rabos e mamas, sim senhor, mas também defendemos o «girl power». As contradições ficam para outra altura.
(publicado originalmente na edição de Junho de 2012 da revista Loud!)
Sejamos auto-referenciais, como qualquer película de terror que se preze: o Cagaço deste mês começa com a vossa vítima preferida a sair de um multíplex da capital, fim de tarde de domingo soalheira, com aquela sensação de «meh». Para trás, hora e meia de fantasia espanhola, enésima variação da fórmula «produzido/apresentado por Guillermo Del Toro», matiné para toda a família. Sublinhe-se que nada nos move contra o mexicano de El Laberinto del Fauno ou El Espinazo del Diablo, obras complementares com a Espanha fascista como pano de fundo; o «fantástico» no cinema espanhol dos últimos quinze anos deve-se, em boa medida, a ele e aos seus discípulos. E nós gostamos dessa fantasmagoria alternativa ao universo Disney, grande na pretensão e, quando a coisa corre bem, igualmente bem constituída no resultado. O filme em questão, Mama (entenda-se «mãezinha» e não um qualquer trocadilho à Cinebolso), não peca pela adopção da fórmula Del Toro (um universo infantil que vive à parte do mundo adulto), mas por pespegar-lhe a assombração insatisfeita do século XIX, alma penada pronta a acagaçar tudo o que se lhe puser à frente. Fluxo narrativo, reviravoltas para suspender a respiração ou, vá lá, saltos de fazer desregular a tripa – pouquito, fraquinho, «meh». A dramaturgia do cagaço espanhol nem sempre foi assim, fixada neste anódino estado de arte hollywoodesco – mais forma do que conteúdo, mais verniz do que carne. Nos mesmos anos 90 onde Guillermo del Toro deu o salto a Espanha para mostrar que a Guerra Civil Espanhola pode dar terror redentor, Aléx de La Iglesia perpetrava os seus «crimes ferpectos», destacando-se com o exagerado, delicioso, seminal El Día de La Bestia – o vão de escada (e o telhado!) da Madrid de Almodóvar. Em paralelo, Alejandro Amenábar pegava na herança do uruguaio Narciso Ibañez Serrador (cineasta bissexto e curiosamente, um dos criadores do concurso 1, 2, 3) e provava, desde logo, ser muito melhor contador de histórias do que a maioria dos seus contemporâneos – são dele Abre Los Ojos e The Others, capítulos indispensáveis do terror na transição do século XX para o XXI. Antes, em 1996, Amenábar estreia-se com um orçamento de 116 milhões de pesetas (trocos!) com um filme de terror que é também um filme sobre filmes de terror. Tésis denuncia aquela tesão de mijo que se torna gloriosa se não for mal direccionada (e como sabemos o quão imprevisível é a direcção assistida da urina!) e, ao contrário de Aléx de La Iglesia, Amenábar não está constantemente a reavaliar o processo, incutindo-lhe comicidade ou alívio sardónico. Pelo contrário, torna-o mais sinistro e misterioso. Ángela (Ana Torrent) é uma estudante universitária de cinema (apesar de parecer tia da maior parte dos seus colegas) com uma missão: pesquisar material para uma tese sobre violência no audiovisual. Faz-se amiga de Chema (Fele Martínez), geek desajeitado com uma colecção fastidiosa de filmes violentos. A acção dá duas ou três voltas (não querem que contemos tudo, certo?) e, a dada altura, Ángela vê-se com uma terrível cassete de vídeo em mãos, objecto capaz de comprometer a reputação (e o cadastro) de outro estudante. Trata-se de um filme snuff em que a vítima (torturada até à morte) é uma antiga universitária. A curiosidade de Ángela, o surgimento em cena de uma personagem dúbia (Bosco, interpretado por um jovem Eduardo Noriega), e a evidência cada vez maior do que uma rede de snuff movies pode partir de dentro da própria escola, faz avançar uma história sem fogo-de-artifício, mas com as agulhas a picarem os nervos certos. O cagaço espanhol e Amenábar seriam, a partir daí, generosos na oferta, mas não há terror como o primeiro: Tésis é funesto, acutilante, terrífico. É tesão da boa.
(publicado originalmente na edição de Maio de 2012 da revista Loud!)
Diz a história recente do cinema de terror que depois do «esgotamento» do filme slasher, a meio dos anos 80, o cagaço na tela passou a ser discreto, tímido e envergonhado, só se recuperando com o comic relief de Scream a meio da década seguinte. Várias teses se levantam para este deserto de praticamente dez anos, mas gostamos desta: o espírito doidivanas do filme slasher, sempre afoito à catanada, inalação de charro e exibição despudorada de maminhas ao léu, levou a sua própria machadada quando o mundo lá fora começou a ficar sério. Divertimento de pipoca na boca não deveria misturar-se com questões então prementes como a fome na Etiópia ou, tocando no busílis, o descontrolo da epidemia da sida (a meio dos anos 80 já não apenas um «exclusivo» das saunas de São Francisco). Mas a verdade é que tudo isto fez mossa – e não só no lado americano; também no Reino Unido, em vigência Thatcher, se criou um índex para videoclubes (precavendo a juventude contra os chamados video nasties). Apontava-se, então, uma ligação entre a leviandade do cinema de terror e a decadência moral da sociedade. Depois vieram os videojogos e a culpa passou a ser repartida. Na altura em que escrevemos estas linhas, desconhecemos o desfecho do caso Pistorius, mas suspeitamos que a nova Playstation não se vai poupar em first person shooters. E acreditamos numa coisa: não foi só o «pecado» a fazer desaparecer a cinematografia de terror (da mesma forma que a sífilis não refreou a produção de filmes pornográficos); houve também uma decadência natural motivada pela redundância de uma fórmula que era novidade em 1980, mas que já tinha decepado todos os crash test dummies um par de anos depois. No final dos anos 90, The Blair Witch Project fazia outra coisa: criava condições para o cagaço sem a carga meta-referencial que fez de Scream um filme de miúfa amorosa, daqueles em que o susto se auto-celebra. No boom da internet, gravações em VHS eram já vestígio de outros tempos – e tudo o que é obsoleto, de bonecas de louça a um relógio de cuco, tem condições para fomentar a mais genuína cagufa. Este apelo do vídeo amador, do falso real, do «poderia ter acontecido consigo» sustentou (e ainda sustenta, veja-se a saga Paranormal Activity) bilheteiras em tempo de carestia. Sinister, exibido o ano passado, envereda pelo mesmo filão mas tem outro requinte, até por recuperar o tabu dos filmes snuff. Vemos imagens em Super 8 de uma família de quatro pendurada numa árvore, com capuzes enfiados nas cabeças e cordas à volta dos pescoços. Algum tempo depois, Ellison Oswalt (Ethan Hawke) – escritor de livros baseados em crimes reais – muda-se para a casa da família assassinada com mulher e dois filhos. De início, os entes queridos desconhecem que foi no quintal das traseiras que tudo se passou. A tensão é ultrapassada pela paciência da mãe e, sobretudo, pela confiança que, inicialmente, Ellison mostra na sua investigação. Mas este é daqueles casos em que, a cada desenrolar do novelo, a clarividência do protagonista se vai degradando ao ponto de Ellison ser, a certa altura, escravo do «monstro» que criou, atiçado por um projector e uma série de fitas de 8 milímetros encontradas no sótão onde se vêem etiquetadas datas distintas (1966, 86, 79, 98, 2011) e situações também diferentes (traduções livres: «Durante o sono», «Churrasco», «Festa na piscina», «Ceifeira debulhadora» e «Família pendurada»). Sinister – melhor elogio será difícil – faz jus ao título. Ethan Hawke exagera, aqui e ali, nos esgares de «estou a ficar avariado da caixa dos pirolitos», mas ao cabo de 110 minutos não só já mordemos o lábio uma série de vezes como nos colocamos, paulatinamente, as interrogações da ordem – como nos melhores filmes do género. No fim, o desconforto. Sinistro, funesto, próprio de um cagaço de boa colheita.
(publicado originalmente na edição de Março de 2012 da revista Loud!)
Em 2008, Chipre e Malta aderiram ao Euro (a culpa não é nossa!), o preço do petróleo começou a inchar, Fidel Castro deixou a presidência de Cuba, a queda de um avião matou 71 na China e um ciclone ceifou milhares de vidas na antiga Birmânia – tudo isto no primeiro semestre. Porém, nada nos perturbou tanto como Martyrs, segunda longa-metragem do francês Pascal Laugier, que quatro anos antes não nos assustara muito com Saint Ange, assombração em orfanato. Mas Martyrs, estreado em Maio daquele ano, era de outra cepa e, provavelmente, pelo título «cagão» lá fomos nós sem sobreaviso. Não demorámos muito a perceber que estávamos a brincar com fogo; a entrada de rompante obrigou-nos a carregar em pausa, a respirar fundo, a rebuscar um Victan no fundo da gaveta da medicação. 94 minutos depois não estávamos melhor, ressalve-se. Mas o Victan, se usado com fins legítimos (isto é, uma vez sem exemplo) dá sono e a agrura do mundo lá fora «bate» menos. Infelizmente, o meu LCD Samsung não é o mundo lá fora – é uma espécie de Poltergeist que já acagaçou duas ou três poltronas (todos os dias encontro uma uns centímetros mais distante do móvel do Ikea e já não foi uma nem duas vezes que o maple se escapuliu pela varanda). Aos primeiros minutos, um drama daqueles: vemos a pequena Lucie a escapar de um matadouro pestilento, onde esteve aprisionada e sujeita às piores atrocidades uma boa carrada de tempo (contudo, sem danos sexuais). Sem que os malfeitores sejam identificados, a pequenita é remetida a um orfanato. É nesta rígida instituição de acolhimento que conhece outra petiz, Anna. Tornam-se inseparáveis e, entretanto, Anna descobre que Lucie se vê atormentada por uma desfigurada criatura diabólica. Traumas de infância, quem os não tem? Pascal Laugier, matreiro, avança a narrativa quinze anos. Lucie (a actriz Mylène Jampanoï) entra por uma casa adentro e dispara até não deixar pacote de leite por abrir. Depois vemo-la a telefonar à velha amiga Anna (Morjana Alaoui) dando conta de que já limpou o sarampo aos responsáveis pela sua miserável infância encarcerada e precisa de ajuda para enterrar os corpos. É mais ou menos por aqui que tudo o que dissermos poderá tornar-se o que qualquer site avisa com asteriscos e a palavra em inglês spoiler. Mas não será despiciendo asseverar que a história leva uma volta das grandes, não demorando a responder à nossa impaciente pergunta: «então Pascal, já aviaste meia dúzia em meia hora, o que é que vais fazer no resto do filme?». Às duas por três, Anna (repare-se que deixámos de falar de Lucie, porque será?) trava conhecimento com uma senhora que se apresenta apenas como Mademoiselle e é aqui que o degredo começa. Mademoiselle diz fazer parte de uma sociedade secreta que procura descobrir o mistério da vida depois da morte através da criação do que denominam de «mártires». Ora, mártires não é coisa para qualquer um; e para se ser um, ou seja, para se documentar – de acordo com a teoria macabra da pandilha de Mademoiselle – a vida depois da chegada da ceifeira é preciso ficar-se suspenso «por pinças» entre a existência tortuosa e o, digamos, falecimento. Os mártires ficam, por assim dizer, ali à espera. Num estado que não descreveremos por decoro. Privados de tudo, à espera dessa luz, desse esclarecimento que demora a vir (acreditamos em Mademoiselle?). Um terço de Martyrs é brutal, aflitivo; os restantes dois terços são agoniantes, absurdos, terríveis. Parecendo gratuito na sua oferta, Laugier é – conceda-se – fiel à premissa: ser mártir não é pêra doce, vamos lá ver se Anna se aguenta à bronca. E nós aqui a ver, rabinho a tremer em poltrona igualmente temerosa, olhos em fogo, dois dedos bem metidos na garganta à espera do fim. E que fim...
(publicado originalmente na edição de Fevereiro de 2012 da revista Loud!)
Não somos fanáticos do trivia gratuito, mas se dizemos, sem que nos perguntem, que Vítor Paneira – antiga glória do meio campo do Benfica – nasceu na freguesia de Calendário, Vila Nova de Famalicão (e carregamos esta cruz desde meados dos anos 80), é compreensível que informação mais valorosa se nos aloje na mente sem esforço. Ocorre-nos que O Exorcista, o bastas vezes evocado filme de William Friedkin, cumprirá em 2013 respeitáveis 40 anos. Mas esta é fácil, dirão vós, cientes de que este atemorizante festim de cagaço foi o filme mais lucrativo estreado no ano da graça de 1973 (e um cromo requisitado desde então). Não desejamos propriamente acender um fósforo na completa escuridão, mas não nos passaria pela cabeça escrutinar (mais uma vez) um filme que dá capas de livros e inesperadas imagens finais de enganadores filmes de gatinhos no Youtube. A curiosidade não nos leva mais longe, mas desvia-nos da auto-estrada, como qualquer «wrong turn» que acabará, mais cedo ou mais tarde, por dar sarilho. E é por altura que recordamos 1973 como um ano em que os títulos de terror puxavam pela gritaria, continuavam a explorar o mistério pueril (bebés do demónio, ainda inspirados por Rosemary’s Baby), e retomavam manobras iniciáticas com lobisomens, canibais, vampiros e zombies (alguns deles cegos, como os do galego Amando de Ossorio), tudo malta amiga que o filme slasher trataria, alguns anos depois, de despachar para sítio incerto. Particularmente inspirados e com uma fleuma impossível de reproduzir do outro lado do Atlântico, os ingleses prosperavam. A Amicus e a Hammer produziam filmes em barda (alguns de cordel, outros que nos arrepiam até hoje), mas nada faria prever que de portas a bater com o vento (e uma ou outra assombração) passássemos para uma ilha nas terras altas escocesas com hábitos completamente estranhos à rigidez da «mainland». The Wicker Man, realizado por Robin Hardy sob argumento de Anthony Shaffer, é a estranheza em forma de filme – e também a prova de que um cenário inverosímil pode tornar-se tão fiável como os cogumelos em lata do almoço de hoje. Neil Howie (Edward Woodward), polícia, recebe uma carta anónima: pede-se-lhe que vá a Summerisle, ilha fértil, onde uma rapariga se encontra desaparecida há meses. E lá vai ele, desconhecendo que a ilha se rege por um culto pagão que aceita que os casais tenham sexo nos campos, que as crianças venerem um gigante símbolo fálico, e que abocanhar sapos é bom para a tosse. Inicialmente cativado pelas belezas locais (sim, há nudez; sim, há Britt Ekland), Howie cedo percebe que nada consegue sacar aos nativos e nem a mãe da menina desaparecida parece existir. O líder da comunidade, Lord Summerisle (quem mais, se não Christopher Lee?!), mantém-no debaixo de olho. As suspeitas avolumam-se e, mais adiante, se aquilatará que a festa que celebra a boa colheita não é só imbuída de bons espíritos, danças patetas ou música lunática (a esse propósito, realce para «Willow’s Song», de Paul Giovanni com os Magnet, folk psicadélica tão dissimulada como uma boneca de louça inanimada). À medida que o novelo se desenrola, entendemos que não há como voltar atrás: Howie está irremediavelmente enredado nas pistas que vai recolhendo, a ilha vai tratando de o dirigir para o precipício. Um e outro concorrem, com ânimos distintos, para um desenlace desconcertante e sinistro. Não há exorcismos, crianças possuídas ou a trinca marota do Drácula: Summerisle despeja-nos a colheita toda em cima – e mais não dizemos. É muita fruta.
(publicado originalmente na edição de Janeiro de 2012 da revista Loud!)
Cagaço que se quer cagaço não pode ter um «guia de leitura»: é morder o lábio e esperar pelo papão. Mas ok, sejamos pragmáticos, o cinema tem códigos e um género como o terror dispõe de um «livro de estilo». Fugir enquanto se sobe escadas é morte certa, quem sucumbe aos prazeres do sexo tem pecado escrito na testa e um assassino em série à perna, falar com os mortos não é sarilho se à mão houver uma cartolina, um marcador e um copo. Descrevemos, é certo, clichés do cinema de terror mais formulaico, e não vamos atenuar a tendência ao desvendar o presente objecto desta nossa devoção mensal: Tenebrae, filme de 1982 de Dario Argento, um dos mestres de uma tendência que o mundo conhece como «giallo» e que teve o seu apogeu em telas sanguinolentas sobretudo nos anos 70 do século XX. O «giallo» é o cinema de terror a ir ao médico e a trazer para casa uma receita para ser cumprida à risca: o sangue vai jorrar como se fosse Natal na fábrica da Robbialac; o assassino vai usar luvas, óculos escuros, gabardina e, por vezes, vemos os crimes através dos seus olhos; o manancial de suspeitos é elevado (praticamente, pode ser qualquer um) e não distingue sexo nem idade; no final, percebemos as motivações da matança e concluímos que o perpetrador dos crimes não joga com o baralho todo, apesar de, até ao desenlace, parecer uma pessoa equilibrada e/ou colaborante; há um detective (ou mais) com aquela negligência tipicamente latina e quase sempre um (ou mais) passos atrás da verdade; os protagonistas são actores, escritores, modelos, raramente gente normal com ofícios corriqueiros; braços, pernas ou mãos decepadas parecem, flagrantemente, braços, pernas e mãos decepadas de manequins de montra de loja (mas a gente finge que acredita); há nudez e formas à italiana; a arma do crime é bruta e vulgar (de navalhas da barba a machados de cortar lenha); a banda-sonora é, geralmente, fantástica. Quando Tenebrae chega às telas em 1982, já o «giallo» despachou as suas obras-primas (e uma data de gente inocente) e Dario Argento entregou ao mundo litradas de líquido encarnado, nomeadamente nos estilizados Suspiria e Profondo Rosso. De permeio, Brian de Palma andou nas imediações, mostrando o mesmo apreço de Argento por Hitchcock, o «pai» da dissimulação – e do cagaço, porque não? Mas sendo de 1982 (e isso nota-se num ou noutro penteado), Tenebrae é um filme que respira ainda todos os ares da conspiração e da tensão psicológica dos anos 70, acentuados pela banda-sonora dos inescapáveis Goblin (aqui reduzidos ao terceto Claudio Simonetti/Fabio Pignatelli/Massimo Morante), num registo mais actualizado do que o prog-rock clássico da banda-sonora de Profondo Rosso, e antecipando numa só penada os Daft Punk e os Justice (que samplaram o tema principal em «Phantom», do álbum que tem uma cruz como título). A história, como sempre, é apetitosa. Peter Neal (Anthony Franciosa) é um escritor norte-americano de literatura de terror popular na Europa. Em Itália a promover "Tenebrae", a sua última obra, Neal faz-se acompanhar do seu agente e da sua assistente pessoal. Porém, sem saber, é também seguido pela ex-mulher que, discretamente, o vigia a distância segura. O primeiro crime acontece e Neal recebe uma carta que o informa de que foram os seus livros a inspirar o homicídio. Novos crimes (só mulheres, coitadas) e Neal já não é só um escritor famoso a promover o seu livro; torna-se peça fulcral de um puzzle que a polícia tenta resolver com aquele talento trôpego a que Argento nos habituou. Como sempre, ficamo-nos por aqui para evitar estragar surpresas, mas não evitamos salientar que Tenebrae é «giallo» dos sete costados, exibe pescoços trespassados por lâminas afiadas, fugas trepidantes e – motivo de distinção – um canídeo tresloucado capaz de saltar cercas e vedações como gente grande. Somos sensíveis a pormenores deste calibre: dão-nos cães raivosos e solta-se-nos uma lagrimazita teimosa. É terror de cordel? É, sim senhor. E não queremos nós outra coisa.
(publicado originalmente na edição de Dezembro de 2012 da revista Loud!)
Sobre o corpo tremeliquento, um uniforme descartável vagamente assemelhado à «farda» de uma sexagenária a caminho da mercearia. Os pés gelados, um nó na garganta, uma ligeira – mas muito ligeira – percepção cómica do ridículo: encontro-me num cubículo parecido com uma cabine de provas da Zara, mas sem um espelho para pôr a vaidade em dia. Dois cabides, um banco corrido, a porta semi-aberta e eu para aqui deixado, encolhido, numa espécie de tempo suspenso, com um ontem bem distante e um amanhã que nunca mais chega. Basta de poesia: estou há quinze minutos à espera de um batalhão de batas brancas.
É mais ou menos por esta altura que costumo abrir os olhos, respirar de alívio, levantar-me para mais um dia a virar frangos. Mas hoje não há beliscão que me devolva ao conforto do colchão. Sou chamado por uma operacional dois palmos mais alta do que eu. Tem o cabelo apanhado atrás, uma placa que diz «Patrícia», e fala por monossílabos – ok, é um filme português; até porque se fosse francês, não usaria sutiã. Sou conduzido a uma porta mais adiante. Estou agora numa sala climatizada, com um vidro a separar-me de uma espécie de régie. «Deite-se na marquesa, isto dura 20 a 30 minutos, vai ouvir sons muito ruidosos, até já», diz-me um pequenote (de bata branca, claro). Ai Jesus que lá vou eu.
Queira o estimado leitor saber que isto não é a sinopse da minha primeira longa-metragem, mas sim o relato acagaçado da minha primeira ressonância magnética. E se há epifanias que fazem mudar, por completo, a nossa relação com o mundo, esta situação – estando longe de ser fabulosa – fez, pelo menos, com que mudasse a minha relação com o medo (que não me assistia, como se usa dizer agora) de dar por mim acordado, fresco como uma alface, mas sete palcos abaixo do chão que piso todos os dias.
Remetido ao interior de uma urna, sem escapatória, e na companhia de uma banda-sonora infernal que não desejo ao maior acólito de Skrillex, ponho em causa pela primeira vez a minha mais firme convicção de que enterrado vivo não irei desta para melhor. Por dolorosos 20 a 30 minutos, sinto-me como o Ryan Reynolds no Buried (Rodrigo Cortés, 2010), mas sem telemóvel, isqueiro, ou um cutelo afiado.
E ali dentro, apesar de mais arejado do que Reynolds, foi nele e no seu fado que pensei. Abandonado à sua sorte num caixão exíguo, claustrofóbico, e com uma gama de recursos à qual só Angus McGyver conseguiria dar sentido, Reynolds é Paul Conroy, civil norte-americano no Iraque, condutor de pesados sequestrado por malfeitores e com o oxigénio a conta-gotas. Depois de algum impasse – é aceitável que quando acordamos num caixão, precisemos de pôr algumas ideias em dia –, o pobre Conroy fica a saber, via telemóvel, que a sua vida vale 5 milhões de dólares e alguém vai ter que se chegar à frente com o vil metal.
O que se segue é outro pesadelo comum a este que vos escreve: ter de fazer telefonemas para resolver coisas. Mas uma coisa é ligar à TV Cabo com a tanga de que preciso da Sport TV por motivos profissionais outra é ter que ligar a serviços de apoio a cliente para, digamos, evitar ter o mesmo fim que muitos dizem ter sido o do cantor Carlos Paião (mito urbano, diga-se).
Estou eu a pensar nessa ironia macabra que é ter de ouvir «aguarde um momento, por favor» ou «entraremos em contacto consigo assim que conseguirmos resolver o problema» quando temos a vida por um fio, e – ao fundo do túnel – deixa-se espreitar a luz do dia. Ou a iluminação artificial da sala climatizada com aquele odor tipicamente hospitalar que agora me parece tão bem-vindo. Tudo menos electrónica à Skrillex. Tudo menos o pânico da morte de olhos abertos. «Tenha cuidado a descer da marquesa», diz-me outro operacional de bata branca. Tenho, sim senhor. E vou pôr-me na alheta. Ao contrário do que dizia a outra, estar vivo não é só o contrário de estar morto. Boa sorte, Paul Conroy. Vê lá se sais daí.
(publicado originalmente na edição de Novembro de 2012 da revista Loud!)
Houve uma altura, no início da saudosa década de 70 do século XX, em que Brian De Palma se deixou de comédias de pândega e abraçou a nobre arte de acagaçar o próximo. O clique deu-se com Sisters, em 1973, acentuou-se com Obsession, em 1976, ano em que este nativo de Nova Jérsia (como Bruce Springsteen ou Jon Bon Jovi), definiu ainda mais a sua musa (e não falamos de Nancy Allen) com o inescapável Carrie (um pequeno interlúdio para uma confissão embaraçosa: durante anos, na pré-história deste meu fetiche pela semiótica do susto, julguei que «Carrie», canção dos suecos Europe, fosse uma homenagem ao clássico em que Sissy Spacek tomou dois banhos no mesmo dia).
De Palma, trintão na década em que o bigode de Burt Reynolds valia mais do que a cláusula de rescisão de Hulk, continuou a sua caminhada triunfante até meados da década seguinte, ocasião em que se meteu, definitivamente, no «grande cinema» (ou seja, todo o que não entrará nesta página). Registe-se The Fury (1978), com Kirk Douglas e John Cassavetes (e insira-se aqui a expressão «sonho molhado» a troco de nada); o nervoso Dressed To Kill (1980), com Angie Dickinson, Michael Caine e uma Nancy Allen (companheira do cineasta) em ascensão; Blow Out (1981), com a mesma Nancy Allen (terceira referência em 4 mil e tal caracteres, um record pessoal) em posição de maior destaque (e o rapaz John Travolta em modo temerário, e um John Lithgow com a astúcia de um crocodilo); o estelar Scarface (1983), escrito por Oliver Stone, com Al Pacino a dar vida ao nome Tony Montana (e Tony Montana a dar vida ao nome Scarface); por fim, Body Double, festim de maus penteados em que durante boa parte do tempo julgamos que o nome de Melanie Griffith na ficha técnica é um erro de impressão.
Antes de apurar este estupendo jogo de gato e do rato (comum a boa parte dos seus filmes), De Palma resolveu meter tudo no liquidificador para ver o que saía. Chegamos, assim, a Phantom of the Paradise, filme estreado um ano depois do tal «clique» (a transição para meandros sanguinolentos) e que se apresenta como uma mixórdia de terror, comédia, fantasia, ficção-científica, suspense e – tenham medo – musical. Mas calma, estamos em 1974 (dois anos depois em Portugal), a estética é glam-rock e as referências tanto vão de O Fantasma da Ópera e O Retrato de Dorian Gray como a Fausto, num enclave perigoso (no bom sentido) entre o repertório de Elton John na primeira metade dos anos 70, os primeiros delírios de Kevin Ayers e, inevitavelmente, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars, a fantasia glam de David Bowie.
Phantom of The Paradise (que em Portugal se chamou O Fantasma do Paraíso) é o produto típico de uma era em que músicos e cineastas fumavam as mesmas pedras: conta-se a história do pianista/cantor esquizóide Winslow Leach (um «geek» de estatura alta que poderia ter sido pai de Erlend Oye, o ruivo espadaúdo dos Kings of Convenience), que é usado (e abusado; aqui faz sentido o cliché) por um produtor musical/svengali de pouco mais de metro e meio (e, já que estamos numa de comparações, nos lembra o atarracado mentor dos Da Vinci). Swan, assim se chama o produtor (interpretado por Paul Williams, dois réis de gente que viria a compôr «We’ve Only Just Begun» para a voz de Karen Carpenter e, surpresa!, escreveria a letra do genérico de O Barco do Amor), promete a Winslow projecção que este nunca conseguirá por si próprio, adjudicando-lhe a «sinfonia» que estreará Paradise, sala de variedades prestes a abrir portas.
Winslow (magistral interpretação do recentemente falecido William Finley) é ingénuo e acaba na cadeia, primeiro, perdendo o controlo sobre a sua obra; depois volta a «trabalhar» (na rectaguarda) para o satânico vilão, adocicado pela promessa de que a obra-prima que engendrará será interpretada pela ingénua Phoenix (Jessica Harper, que veríamos, três anos depois, como protagonista de Suspiria, de Dario Argento), por quem se apaixona. Só que por esta altura, Winslow não só está desfigurado como perdeu as cordas vocais (e não precisamos de dizer a quem se deverá atribuir a culpa). É ele o «Phantom of the Paradise», vingativa personagem que procurará «corrigir» com grande estrondo todo o mal que lhe foi feito. Pelo meio, vemos uma ópera-rock que faria corar Pete Townshend. E sentimos saudades do tempo em que o cinema (e a música) se misturavam com «medicação» proibida. Mais droga para esta mesa, se faz favor.
(publicado originalmente na edição de Setembro de 2012 da revista Loud!)
Apetece-me começar por aqui: Takashi Miike tem 1 metro e 64. Um gajo está habituado a ver os tortuosos filmes deste japonês desaustinado e reza para nunca ter de o encontrar numa esquina escura. Em Audition (1999), sujeitou um viúvo às diabruras de uma jovem rapariga um pouco mais retorcida do que, à partida, poderíamos imaginar (ahhh, as vezes que a rapaziada não repetiu a cena do «cri cri cri cri» – sobre a qual não nos vamos, obviamente, alongar mas que não é propriamente uma ode aos grilos); em Ichi The Killer (2001) meteu-nos casa adentro um yakuza (fora-da-lei do piorio) sado-maso. Poderíamos continuar, mas desfilar cinematografias com o site do iMDB aberto na janela ao lado é vício geek no qual nos recusamos a incorrer. Takashi Miike só está bem a escangalhar (carne humana, principalmente) e, como temos dificuldades em separar a realidade da ficção, mantivemos respeito. Mas, caramba, 1 metro e 64?! Apesar de quase duas grades de cerveja mais alto do que Danny DeVito, sentimo-nos subitamente apaziguados. Entre as sanguinolentas obras supracitadas, Miike (52 anos por estes dias), urdiu uma obra mais obscura que, por razões que imaginamos de saúde pública, não passou do circuito dos festivais de cinema (habituais antros de depravação, do deboche e dos moleskines). Trata-se de Visitor Q (2000), espécie de jackpot absoluto da mente doidivanas, coquetel danoso que junta as secreções mais virulentas da psique oriental (sim, que do lado de cá somos todos do Vaticano). Se Visitor Q fosse uma long-drink, era uma que misturasse, em doses iguais, uísque, vodca, aguardente de cana, Pisang Anbon, vinho para temperar filetes de pescada e diarreia de bebé. Percebemos a hesitação dos programadores dos multiplex: era uma chatice pagar a alguém para andar de esfregona na mão de hora e meia em hora meia. Já se sente melhor? Então sigamos para uma sinopse maneirinha. Um repórter de televisão na mó de baixo e a braços com um problema de ejaculação precoce decide esboçar um documentário sobre sexo e violência na juventude. Vai daí, trata de ter sexo com a filha – que, vai-se a ver, é prostituta – e filma o filho a «enfardar» na escola. A criança, revoltada, desconta na mãe, que – ironia das ironias – também deduz para a segurança social por via dos rendimentos obtidos em actividade de libertinagem – e, cerejinha podre sobre o bolo, entope as suas veias com heroína. Chiça, que isto não é coisa pouca. A toada é tão hiperbólica como aquela cena de A Casa na Pradaria em que, depois de um monólogo dramático de uma figura hirsuta, todas as personagens desatam numa sessão de gargalhada à desgarrada que perdurou, acreditamos, até ao almoço do dia seguinte (aqui vai ela, para sua comodidade). Só que em Visitor Q não há risota nem benevolência exagerada de Michael Landon: há um pai que dá ares de samurai de subúrbio e, munido de faca de serrilha, escarafuncha o escalpe de um dos petizes que desancam no filho («isto é um festival!», exclama, possuído) e uma mãe que, no intervalo de mais um chuto, arremessa uma chave de fendas contra a cabeça de outro colegial (não costumamos ser tão generosos, mas cá vai disto). O quotidiano ensandecido é presenciado por uma visita (Q, claro) que observa esta vidinha pacata de facas de talho a fazer rasantes a crianças, frases como «até um cadáver consegue ficar molhado», e leite materno saído directamente de um «seio heroinómano». Neste desafio à criatividade javarda (imaginamos Miike com os amigos ao despique: «epá, e se a velha der no cavalo?»; «e se o gajo tiver a pila murcha?», «e se…») deve residir, suspeitamos, uma reflexão sobre a cultura japonesa. E se Miike, caga-tacos comprovado, já não nos mete medo, nipónicos deste calibre preferimos ver ao longe (até puxámos o sofá para trás quando arrancou o DVD).
(publicado originalmente na edição de Agosto de 2012 da revista Loud!)
Há quem diga, com nítido entusiasmo, que não passa seis meses sem comer uma caldeirada de peixe numa aldeola piscatória não sei onde, que só ele sabe. Ou que sempre que passa pelas Azenhas do Mar lá vai mariscada de bradar aos céus e ai Jesus que aqueles percebes sabem a mar – tudo a favor de mariscadas orgásticas (oh sim, mais, mais), mas o saborzinho ao vil oceano é epifania que dispenso (e julgo que de acordo comigo estará toda a infeliz alma que teve o infortúnio de levar com uma onda na tromba numa ida à praia em 1985).
Por aqui, apesar do apreço pelo bom marisco e do respeitinho pelo mar bravio, os vícios são outros. E há que assumir um deles, sem pruridos: já há uns bons três meses que não vejo um filme com pacóvios americanos, gente com espaço entre os dentes à Nel Monteiro, higiene íntima digna de um Beato Salú e uma propensão para interagir sexualmente à bruta com membros da família. Dirão que não preciso de recorrer à cinematografia ianque, que basta ver a Liga dos Últimos. Concordo, tirando a parte do sexo, que nunca mostraram. Mas perdoem-me por preferir, ainda assim, a ficção.
No que diz respeito à cinematografia de Rob Zombie, homem que não será estranho aos leitores deste mensário, sou um atraso de vida: dele vi, antes de mais, a recriação de Halloween (não estragou, o que já merece aplauso) e, por parvoíce, decidi assistir primeiro a Os Renegados do Diabo (The Devil’s Rejects, título original), estando ainda por perscrutar a película que lhe deu origem, A Casa dos 1000 Cadáveres.
Se vos falar de «sequela», é porque – claramente – li na internet. Mas ainda assim manda a sensatez sublinhar que Os Renegados do Diabo, a segunda longa-metragem de Zombie, de 2005, é – de facto – a sequela de A Casa dos 1000 Cadáveres, levada à tela dois anos antes. Tal como no primeiro (dizem-me), no filme que aqui se disseca acompanhamos uma família de pacóvios de província com uma tendência irreprimível para limpar o sarampo a terceiros. Para quem não está a ver, imagine-se o clã Ronaldo se o rapaz não tivesse jeito para dar uns toques e pusesse a família toda a trabalhar para o Alberto João Jardim.
Logo a abrir, para entretenimento generalizado, há uma troca de tiros entre a malta do xerife local e a pouco garbosa família Firefly, responsável por um número de desaparecimentos superior à conta-corrente do consórcio Pepe/Bruno Alves. O que se segue é um bem engendrado arraial de porrada criteriosamente distribuída, com gente duvidosa a enfardar de gente ainda mais duvidosa, intriga entre foras-da-lei, badalhoquice entre foras-da-lei e respectivos interesses femininos, tudo passado num muito amarelo final dos anos 70, onde badalhoquice, foras-da-lei e, sobretudo, interesses femininos são coisas boas que nunca ousaremos reprimir (e expressões que, obrigação contratual, somos forçados a repetir).
Não é do nosso feitio revelar mais do que é preciso, mas importa deixar claro que não estranhamos a ausência de uma parte 3 da saga – e já lá vão sete anos. Uma terceira divisão, série B, voltará sempre lá para o outono num pelado perto de si; recuperar de um par de calibre 10 no lombo já não me parece tão fácil. A família Firefly não terá o instinto de sobrevivência da pandilha tresloucada que Robert Englund (sim, o Freddy Krueger) lidera em 2001 Maniacs, outro filme de «hillbillies» a merecer consulta («You are what they eat» é o mote), mas somos tentados a simpatizar com a alarvidade de Captain Spaulding, uma espécie de Manuel Moura dos Santos sem nada a perder. Sem esquecer que filme onde entre, nem que seja por segundos, Michael Berryman («antepassado» do ex-árbitro Pierluigi Collina) tem, imediatamente, a Ordem de Mérito do Cagaço por serviços prestados à carnificina mundial. E isto não é coisa pouca.
(publicado originalmente na edição de Julho de 2012 da revista Loud!)