segunda-feira, 19 de março de 2012

Secuestrados (2010)

Há uma altura nesta nossa aventura no planeta Terra em que conseguimos sustentar a validade e a pertinência do nosso discurso (e da nossa vida, porque não?) com base em duas atitudes antagónicas: o recurso a todo e qualquer cliché que ajude a emoldurar a nossa forma de agir ou de pensar; ou a recusa absoluta de frases e procedimentos usuais, numa extenuante demanda de originalidade. As duas atitudes são sustentáveis ou insustentáveis consoante a matéria-prima dos seus «portadores» – normalmente quem está a meio caminho entre as duas posições e não é obrigado a pensar na vida nestes termos é que a vive como deve ser (o que nos coloca, desde já, do lado de fora deste clube). Mas uma coisa é a vida (e as dívidas, e se vamos tomar o café no sítio do costume ou no outro que baixou o preço, e por que é que não se fez nada de jeito no fim-de-semana); outra é o cinema de terror. Aqui, assumimos, não nos dá muito que pensar o embate com o cliché: ajuda-nos a negligenciar a subjectividade, a cancelar temporariamente a dúvida, a opinar sobre coisas sem o peso da definição. É por isso que vamos sempre abordar os longos cabelos negros sobre as faces das esquálidas criaturas defuntas do cinema asiático sem precisar de esclarecer logo que «asiático» é uma generalização para sul-coreano, japonês e, aqui e ali, tailandês; é por isso que dizemos que o cinema espanhol reflecte a vida espanhola tal como ela nos parece que é, e que os diálogos são trepidantes porque, na realidade, eles não se calam (tal como atestado nas visitas que nos fazem por altura da Semana Santa); e em Portugal não existe cinema de terror porque resolvemos os nossos medos a rir (o que é uma estupidez, porque depois o que tem realmente piada é recebido com suspeição). Da mesma forma que se diz que a noite do Porto é sempre uma animação (uma asserção que enerva mais do que orgulha os autóctones), também se dirá aqui – sem pensar duas vezes – que o cinema de terror/suspense espanhol nunca nos deixou ficar mal. E nem vamos lá atrás, a Narciso Ibañez Serrador ou aos zombies cegos de Amando de Ossorio; vamos ao Alejandro Amenábar de Tesis (e, depois, Abre Los Ojos e The Others), ao Aléx de La Iglésia do estonteante El Día de La Bestia (e, já fora do terror, La Comunidad), ao mexicano Guillermo Del Toro, a Jaume Balagueró, Paco Plaza, Mateo Gil, Isidro Ortiz, Juan Antonio Bayona, Nacho Cerdà, Nacho Vigalondo (do estupendo Los Cronocrímenes), Guillem Morales, Elio Quiroga, F. Javier Gutiérrez, Laura Mañá, Rodrigo Cortés e Koldo Serra (perdoai-nos, Senhor, o name-dropping). Secuestrados (Miguel Ángel Vivas, 2010) é um caso curioso porque se demite do «cliché espanhol» para abraçar, sem reservas, um dos maiores lugares-comuns (e estamos no domínio do elogio) do cinema francês de choque e horror: a invasão do lar com consequências ao nível da carne picada. OK, os créditos indicam co-produção entre os dois países que nos estão mais perto por via terrestre, mas um dos pontos de contacto mais oportunos até pode ser, neste caso, o seco Funny Games, apesar de em Secuestrados a violência ser mais óbvia (e, paradoxalmente, menos penosa de testemunhar) do que no filme de Michael Haneke. Para um cheirinho, o resumo do IMDb não deslustra: três criminosos com pronúncia da Europa de Leste irrompem numa casa localizada num condomínio privado em Madrid, fazem dos seus habitantes reféns e obrigam o patriarca a dar uma voltinha de carro para esvaziar os cartões bancários da família. É uma ordem de trabalhos lixada e não há aqui delicadezas. Como também não há artifícios barrocos na forma de Vivas filmar a peripécia, engendrando um tempo-real através de planos-sequência e, lá mais para a frente, dividindo o ecrã em dois (e sobre tecnicidades já fomos demasiado longe). Sobra um interessante exercício de frieza, assente num desancar implacável de inocentes que se esgatanham pela sobrevivência. E sobre o que mais sobra ou deixa de sobrar ficamos por aqui.

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